São Paulo, quarta-feira, 10 de outubro de 2001

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ANÁLISE

Bush e Blair já perderam a guerra de palavras

ROBERT FISK
DO "THE INDEPENDENT"

Bush e Blair podem dizer ao mundo que vencerão a "guerra contra o terrorismo", mas, no Oriente Médio, onde Osama bin Laden ganha status quase mítico entre árabes, eles já perderam.
Quer seja um ministro libanês, um jornalista saudita, um bancário jordaniano ou um egípcio, a resposta é a mesma: a voz de Bin Laden, transmitida repetidas vezes para milhões de residências, expressa reivindicações e ressentimentos -sem falar na fúria- dos muçulmanos do Oriente Médio, que têm visto seus governantes evitarem críticas sérias ao bombardeio do Afeganistão.
Quando assistiram ao último videoteipe de Bin Laden, o Ocidente se concentrou no que ele disse sobre as atrocidades nos EUA. Se ele expressou sua aprovação, apesar de negar qualquer responsabilidade individual, isso não significa que, na realidade, era ele quem estava por trás do massacre de 11 de setembro? Já os árabes escutaram o discurso com outros ouvidos. Eles ouviram uma voz que acusou o Ocidente de aplicar critérios distintos a países e povos diferentes e de agir com arrogância em relação ao Oriente Médio, uma voz que pôs o dedo na ferida e falou do problema fundamental da vida de muitos árabes: o conflito palestino-israelense e a continuidade da ocupação israelense.
Agora, como disse ontem um morador do Cairo, os árabes acreditam que os EUA "estão tentando matar o único homem disposto a falar a verdade".
Os civis árabes, normalmente relutantes em identificar-se quando seus pontos de vista divergem dos do governo, andam falando mais abertamente sobre sua indignação. "Eles dizem que seu alvo é Bin Laden", comentou Samar al-Naji, na Jordânia. "Então atacam pessoas inocentes no Afeganistão. Eles atacam muçulmanos, ao mesmo tempo em que ignoram os atos de Israel, o Estado terrorista que demole casas de palestinos e mata mulheres e crianças." Al-Naji, 29, é bancário -não chega a ser versado em política.
Na Universidade Ain Shams, no Cairo, orações foram feitas pelos mortos do Afeganistão, e na cidade de Zagazig, no delta do rio Nilo, os estudantes foram direto ao cerne do problema de todos os regimes árabes pró-ocidentais. "Por que vocês mantêm silêncio, governantes nossos?", foi uma das palavras de ordem. "Receberam ordens da América?" É claro que isso é bobagem. Os governantes dos regimes árabes que costumamos qualificar como "moderados" não precisam de ordens para dar seu apoio discreto ao Ocidente. E vale lembrar que Bin Laden prega a derrubada deles.
É apenas em países árabes mais livres que os ministros de Estado podem dizer o que pensam. O ministro libanês da Informação, Ghazi Aridi, vê a declaração de Osama bin Laden como "manobra inteligente". Segundo ele, está ocorrendo "um incitamento internacional contra uma só pessoa. Se ele for morto, vai se tornar um símbolo. Se sobreviver, se tornará um símbolo ainda mais forte".
Sentimentos na região do Golfo estão à flor da pele. Um jornalista saudita conta: "Conheço idosas que ficam acordadas até tarde para fazer orações por Bin Laden. Sua aparição na televisão foi um ótimo golpe de relações públicas, especialmente quando falou da Palestina. As pessoas não o elogiam em público; nada é comentado nas mesquitas. Porém, em particular, todos falam dele."
Já um editor saudita, Jamal Kashoggi, afirmou que muitos sauditas fazem fortes críticas a Bin Laden, dizendo que ele está denegrindo a imagem do islã, e prevêem um desfecho menos pessimista no Afeganistão. "Em Candahar não há apenas defensores do Taleban, mas também da monarquia", ele disse. "Os afegãos que se decepcionaram com os mujahidines anti-soviéticos e se voltaram ao Taleban agora estão decepcionados com o Taleban e talvez aceitem o retorno da monarquia." Mas esse ponto de vista, que quase certamente coincide com o da família real saudita, pode ser minoritário no país.
Em países que vêm sofrendo os efeitos de um "terrorismo" muito maior, em termos de morte e sofrimento, a própria linguagem usada pelo presidente Bush vem sendo motivo de muita revolta.
"Estou farto de ouvir falar em terrorismo, terrorismo, terrorismo", gritou comigo o administrador de uma importante construtora libanesa. "Quando vocês têm inimigos, eles são "terroristas", "loucos" ou "criminosos". Quando nós temos inimigos, vocês pedem que nos conciliemos com eles. Vocês têm Bin Laden. Nós temos Sharon, que é amigo de vocês e a quem Bush dá a mão."
Muitos libaneses acham que o atual primeiro-ministro israelense, Ariel Sharon, deveria ser indiciado como criminoso de guerra por sua atuação nos massacres dos campos de refugiados palestinos de Sabra e Chatila, em 1982, nos quais até 1.800 civis foram assassinados em três dias pelas milícias cristãs aliadas de Israel, enquanto o exército israelense assistia tudo de fora dos campos.


Tradução de Clara Allain



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