São Paulo, domingo, 10 de outubro de 2004

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"Nunca aprendi a viver", afirma pensador

JEAN BIRNBAUM
DO "LE MONDE"

Aos 74 anos, Jacques Derrida, filósofo de renome mundial, segue seu caminho de pensamento com uma singular intensidade, enquanto luta contra a doença. Em sua casa em Ris-Orangis, na região parisiense, ele evoca para "Le Monde" sua obra, seu itinerário e seu rastro.

Pergunta - Desde o verão de 2003 sua presença nunca foi tão manifesta. O senhor não apenas assinou várias obras novas, como também correu o mundo para participar de diversos colóquios internacionais organizados em torno de seu trabalho -de Londres a Coimbra, passando por Paris e, ultimamente, o Rio de Janeiro. Também lhe dedicaram um segundo filme (Derrida, de Amy Kofman e Kirby Dick, depois do muito belo D'ailleurs Derrida, de Safaa Fathy em 2000), assim como várias edições especiais de revistas. É muita coisa para um ano só, no entanto o senhor não esconde que está... Derrida - ... pode dizer, perigosamente doente, é verdade, e passando por um tratamento perigoso. Mas deixemos isso de lado, por favor, não estamos aqui para um boletim de saúde -público ou secreto...

Está bem. Nesta entrevista, vamos sobretudo voltar a "Espectros de Marx". Obra crucial, livro-etapa, inteiramente dedicado à questão de uma justiça futura, e que começa com essa exortação enigmática: "Alguém, você ou eu, se adianta e diz: eu gostaria de aprender a viver finalmente". Mais de dez anos depois, onde está o sr. hoje, quanto a esse desejo de "saber viver"? Derrida - Trata-se principalmente de uma questão de uma "nova internacional", subtítulo e motivo central do livro. Além do "cosmopolitismo", além do "cidadão do mundo" como o de um novo Estado-nação mundial, esse livro antecipa todas as urgências "altermundialistas" nas quais eu creio e que aparecem melhor hoje. O que eu chamava então de uma "nova internacional" nos exigiria, dizia eu em 1993, um grande número de mutações no direito internacional e nas organizações que regem a ordem do mundo (FMI, Organização Mundial do Comércio, G8 e principalmente a ONU, da qual seria necessário modificar pelo menos a Carta, a composição e o local de residência -o mais longe possível de Nova York...).
Quanto à fórmula que você citou ("aprender a viver finalmente"), ela me ocorreu quando terminei o livro. De início ela joga, mas seriamente, com seu sentido comum. Aprender a viver é amadurecer, educar também. Chamar alguém para lhe dizer "vou ensiná-lo a viver" significa, às vezes em tom de ameaça, vou formá-lo, quer dizer, amestrá-lo. Depois, e o equívoco desse jogo me interessa sobretudo, esse suspiro também se abre a uma interrogação mais difícil: viver, isso pode ser ensinado? Aprendido? Podemos aprender, por disciplina ou por aprendizado, por experiência ou experimentação, a aceitar, ou melhor, a afirmar a vida? Ao longo de todo o livro ecoa essa inquietação da herança e da morte. Ela também atormenta os pais e seus filhos: quando você se tornará responsável? Quando finalmente vai responder por sua vida e seu nome?
Então, bom, para responder sem mais desvios a sua pergunta, não, nunca aprendi a viver. De modo nenhum! Aprender a viver, isso deveria significar aprender a morrer, a levar em conta, para aceitá-la, a mortalidade absoluta (sem salvação, nem ressurreição, nem redenção) -nem para si mesmo nem para o outro. Desde Platão, é a velha injunção filosófica: filosofar é aprender a morrer.
Acredito nessa verdade sem me render a ela. Cada vez menos. Não aprendi a aceitá-la, a morte. Somos todos sobreviventes em sursis (e, do ponto de vista geopolítico de "Espectros de Marx", a insistência vai sobretudo, em um mundo mais desigual que nunca, para os milhares de seres vivos -humanos ou não- a quem são recusados não só os "direitos do homem" elementares, que datam de dois séculos e que são enriquecidos incessantemente, mas em primeiro lugar o direito a uma vida digna de ser vivida). Mas continuo ineducável quanto à sabedoria do saber morrer. Ainda não aprendi ou não adquiri nada sobre esse assunto. O tempo do sursis encolhe de modo acelerado.
Não somente porque eu sou, juntamente com outros, herdeiro de tantas coisas, boas ou terríveis: com freqüência crescente, a maioria dos pensadores aos quais eu estive associado estão mortos, sou tratado como sobrevivente: o último representante de uma "geração", aquela, de modo geral, dos anos 60; o que, sem ser rigorosamente verdade, não me inspira somente objeções mas também sentimentos de revolta um pouco melancólicos. Como, além disso, alguns problemas de saúde se tornam prementes, a questão da sobrevivência ou do sursis que sempre me obcecou, literalmente, a cada instante de minha vida, de maneira concreta e inegável, hoje assume outras cores.
Sempre me interessei por essa temática da sobrevivência, cujo sentido não se acrescenta ao viver e ao morrer. Ela é original: a vida é sobrevida. Sobreviver no sentido corrente quer dizer continuar vivendo, mas também viver após a morte. A propósito da tradução, Walter Benjamin salienta a distinção entre "überleben", de um lado, sobreviver à morte, como um livro pode sobreviver à morte do autor ou uma criança à morte de seus pais, e, de outro lado, "fortleben", continuar vivendo. Todos os conceitos que me ajudaram a trabalhar, sobretudo o do vestígio ou do espectral, estavam ligados ao "sobreviver" como dimensão estrutural. Ela não deriva nem do viver nem do morrer. Não mais do que o que chamo de "luto original". Este não espera a morte dita "efetiva".

Pergunta - O senhor utilizou a palavra "geração". Uma noção de uso delicado, que ocorre com freqüência sob sua pluma: como designar aquilo que, em seu nome, se transmite de uma geração? Derrida - Sirvo-me dessa palavra aqui de maneira um pouco imprecisa. Podemos ser o contemporâneo "anacrônico" de uma "geração" passada ou futura. Ser fiel aos que são associados a minha "geração", tornar-se o guardião de uma herança diferenciada, mas comum, quer dizer duas coisas: primeiro, ater-se eventualmente contra tudo e contra todos, a exigências compartilhadas, de Lacan a Althusser, passando por Levinas, Foucault, Barthes, Deleuze, Blanchot, Lyotard, Sarah Kofman, etc.; sem citar tantos pensadores escritores, poetas, filósofos ou psicanalista felizmente vivos, dos quais também herdo, outros sem dúvida no estrangeiro, mais numerosos e às vezes ainda mais próximos.
Eu designo assim, por metonímia, um etos de escrita e de pensamento intransigente ou mesmo incorruptível, sem concessão nem sequer à filosofia e que não se deixa assustar por aquilo que a opinião pública, a mídia ou o fantasma de um leitorado intimidativo poderiam nos obrigar a simplificar ou a recusar. Daí o gosto severo pelo refinamento, o paradoxo, a contradição insolúvel.
Essa predileção também é uma exigência. Ela alia não somente aqueles e aquelas que citei um pouco arbitrariamente, quer dizer, injustamente, mas todo o meio que os sustentava. Tratava-se de uma espécie de época provisoriamente terminada, e não simplesmente dessa ou daquela pessoa. É preciso salvar isso, ou fazê-lo renascer, portanto, a qualquer preço. E a responsabilidade hoje é urgente: ela pede uma guerra inflexível à "doxa", àqueles que hoje chamamos de "intelectuais da mídia", a esse discurso geral formatado pelos poderes da mídia, ela mesma entre as mãos de lobbies políticos e econômicos, muitas vezes editoriais e acadêmicos também. Sempre europeus e mundiais, é claro. Resistência não significa que devemos evitar a mídia. É preciso, quando possível, desenvolvê-la e ajudá-la a se diversificar, lembrar-lhe dessa própria responsabilidade.


A íntegra desta entrevista foi publicada no "Le Monde" em 18/08/2004. Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.

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