São Paulo, quarta-feira, 11 de fevereiro de 2004

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ARTIGO

Medida visa criar pacto laico entre jovens

GILLES KEPEL
ESPECIAL PARA O "EL PAÍS"

Uma boa notícia: os radicais islâmicos e os neoconservadores norte-americanos finalmente se uniram para lançar um jihad e uma cruzada conjunta contra os franceses. O que será que está em jogo que é capaz de provocar uma coalizão tão estranha? É o "hiyab", ou véu feminino, que algumas alunas muçulmanas usam nos colégios públicos franceses.
Desde que o presidente francês anunciou sua intenção de apresentar um projeto de lei para proibir "todo tipo de símbolo religioso ostensivo" nas escolas públicas, os incendiários clérigos muçulmanos da Al Jazira começaram a insultar no ar o arquiinimigo do islã, a França, com sua "laïcité" (laicidade) descrente. Parece que dissipou-se ao vento o caso de amor que o mundo islâmico manteve com Jacques Chirac por ele ter liderado a resistência mundial contra a política belicista de George W. Bush no Iraque.
Enquanto isso, uma ampla gama de partidários das liberdades lançou uma ofensiva desde a retaguarda, sob a forma de uma cruzada ética contra um Estado francês autoritário, racista e que se opõe à liberdade. Afinal, por que diabos alguns centímetros quadrados de tecido cobrindo o cabelo de castas adolescentes muçulmanas representariam uma ameaça à identidade francesa?
Como os Estados Unidos, a França é um país de imigrantes, só que, até muito pouco tempo atrás, não parecia sê-lo. Basta abrir a lista telefônica de Paris para descobrir que a maioria dos sobrenomes (como o do autor deste artigo) não é de franceses: são judeus poloneses, italianos, espanhóis, europeus centrais e norte-africanos que vieram à França em massa ao longo do século passado para, como diz um antigo ditado iídiche, serem "felizes como Deus na França". E muitos o conseguiram: basta verificar os sobrenomes da elite cultural, política e empresarial francesa.
Na segunda metade do século 20, juntamente com o fim do jugo colonial francês no norte da África, milhões de muçulmanos emigraram dessas costas para a França, que acabava de sair da Segunda Guerra Mundial e estava sedenta de mão-de-obra barata.
Num primeiro momento, eles foram política e culturalmente invisíveis; eram, em sua maioria, homens solteiros. Trouxeram suas mulheres e seus filhos e tiveram mais filhos na França, filhos que, em sua maioria, obtiveram a nacionalidade francesa. Mas não desfrutaram da mesma história de êxito que as primeiras ondas de imigrantes.
Os anos 70 e 80 foram anos de desemprego maciço, e os trabalhadores não qualificados do norte da África foram os mais afetados. Os filhos e pais desempregados careciam de um modelo, e a sociedade francesa perdeu seus atrativos sociais para eles, pois não existia uma perspectiva de mobilidade ascendente. Os filhos eram franceses, normalmente só falavam francês, e se sentiam marginalizados, já que os mecanismos de integração tradicionais -o emprego, os sindicatos, as escolas e o serviço militar- passavam por uma crise grave.
Enquanto isso, na margem sul e oriental do Mediterrâneo, os movimentos islâmicos começaram a tomar o lugar dos nacionalistas como principais ideólogos e provedores de identidade cultural.
Em 1989, eles obtiveram seu primeiro avanço nas escolas francesas. A Irmandade Muçulmana e outros grupos da mesma índole começaram a erguer, peça por peça, uma fortaleza cultural nos "subúrbios islâmicos" franceses.
Usar o véu dentro da escola era um meio de erguer uma barreira cultural e de ostentar um sinal de "passagem proibida". Como seus homólogos no Egito e na Argélia, A Irmandade Muçulmana afirmava que a educação não levava a mais do que à adulteração cultural, à traição da identidade islâmica, traição que nem sequer seria recompensada com empregos.
Assimilar-se à cultura francesa equivalia à apostasia: o véu era a forma de restabelecer, no país da irreverência, a comunidade dos crentes dentro da qual seria possível encontrar uma esposa crente (vale notar que, na França, diferentemente do que acontece nos países vizinhos do outro lado do Reno ou do canal da Mancha, a taxa de casamentos "mistos" supera em muito a de casamentos entre membros da mesma comunidade), ter filhos crentes e unir-se ao que muitos enxergavam como as grandes causas do mundo muçulmano, como a Palestina, a Bósnia e o jihad na Argélia.
Aumentaram as pressões exercidas contra os "maus muçulmanos" que não defendiam o véu ou contra os jovens que não faziam jejum no Ramadã.
Ao mesmo tempo, começaram a ser divulgados vídeos em que se elogiava o jihad contra os infiéis de modo geral e, em particular, contra os judeus.
Em sala de aula, o ensino sobre o Holocausto era objeto de hostilidade. Nos pátios das escolas, estouravam brigas com jovens judeus a cada vez que, na noite anterior, a Al Jazira tivesse difundido cenas da repressão israelense na faixa de Gaza.
Esses fenômenos foram vistos como extremamente preocupantes. Tiveram alcance limitado, mas seu impacto sobre a opinião pública foi devastador.
Nem todas as estudantes que se cobrem com o "hiyab" aprovam essas atitudes, mas o véu faz parte de uma divisão da comunidade escolar, divisão que segue linhas de separação religiosas que estão conduzindo à justaposição de segmentos hostis que têm por objetivo enfraquecer o próprio propósito da educação: proporcionar aos alunos conhecimentos comuns que lhes permitam construir seu próprio eu, seu futuro e sua liberdade como cidadãos.
Os véus, os solidéus, os crucifixos e outras coisas do gênero não passam de sintomas. A origem dos conflitos é social e está relacionada à incapacidade da economia francesa (e européia) de chegar às camadas mais pobres da sociedade, freqüentemente formadas por imigrantes recentes.
Nesse contexto, a proibição de sinais religiosos ostensivos nas escolas públicas não passa de uma simples medida de conservação destinada a refrear a fragmentação do tecido escolar. Ela não foi pensada para servir de cura para todos os males sociais, mas para dar início ao processo que conduza a um novo pacto laico entre todas as crianças e jovens do país, seja qual for sua origem e religião, na véspera do centenário das leis de 1905 que separaram a igreja do Estado e abriram caminho para a modernização da França.
Sejam quais forem as dificuldades, esperemos que o século atual seja testemunha de um novo caldeirão de cultura que, sem dúvida, terá mais sabor de cuscuz, o tradicional prato norte-africano.


Gilles Kepel é professor catedrático sobre o Oriente Médio no Instituto de Estudos Políticos de Paris.

Tradução de Clara Allain


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