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ARTIGO
Medida visa criar pacto laico entre jovens
GILLES KEPEL
ESPECIAL PARA O "EL PAÍS"
Uma boa notícia: os radicais islâmicos e os neoconservadores
norte-americanos finalmente se
uniram para lançar um jihad e
uma cruzada conjunta contra os
franceses. O que será que está em
jogo que é capaz de provocar uma
coalizão tão estranha? É o "hiyab", ou véu feminino, que algumas alunas muçulmanas usam
nos colégios públicos franceses.
Desde que o presidente francês
anunciou sua intenção de apresentar um projeto de lei para proibir "todo tipo de símbolo religioso ostensivo" nas escolas públicas, os incendiários clérigos muçulmanos da Al Jazira começaram a insultar no ar o arquiinimigo do islã, a França, com sua "laïcité" (laicidade) descrente. Parece
que dissipou-se ao vento o caso de
amor que o mundo islâmico
manteve com Jacques Chirac por
ele ter liderado a resistência mundial contra a política belicista de
George W. Bush no Iraque.
Enquanto isso, uma ampla gama de partidários das liberdades
lançou uma ofensiva desde a retaguarda, sob a forma de uma cruzada ética contra um Estado francês autoritário, racista e que se
opõe à liberdade. Afinal, por que
diabos alguns centímetros quadrados de tecido cobrindo o cabelo de castas adolescentes muçulmanas representariam uma
ameaça à identidade francesa?
Como os Estados Unidos, a
França é um país de imigrantes,
só que, até muito pouco tempo
atrás, não parecia sê-lo. Basta
abrir a lista telefônica de Paris para descobrir que a maioria dos sobrenomes (como o do autor deste
artigo) não é de franceses: são judeus poloneses, italianos, espanhóis, europeus centrais e norte-africanos que vieram à França em
massa ao longo do século passado
para, como diz um antigo ditado
iídiche, serem "felizes como Deus
na França". E muitos o conseguiram: basta verificar os sobrenomes da elite cultural, política e
empresarial francesa.
Na segunda metade do século
20, juntamente com o fim do jugo
colonial francês no norte da África, milhões de muçulmanos emigraram dessas costas para a França, que acabava de sair da Segunda Guerra Mundial e estava sedenta de mão-de-obra barata.
Num primeiro momento, eles
foram política e culturalmente invisíveis; eram, em sua maioria,
homens solteiros. Trouxeram
suas mulheres e seus filhos e tiveram mais filhos na França, filhos
que, em sua maioria, obtiveram a
nacionalidade francesa. Mas não
desfrutaram da mesma história
de êxito que as primeiras ondas
de imigrantes.
Os anos 70 e 80 foram anos de
desemprego maciço, e os trabalhadores não qualificados do norte da África foram os mais afetados. Os filhos e pais desempregados careciam de um modelo, e a
sociedade francesa perdeu seus
atrativos sociais para eles, pois
não existia uma perspectiva de
mobilidade ascendente. Os filhos
eram franceses, normalmente só
falavam francês, e se sentiam
marginalizados, já que os mecanismos de integração tradicionais
-o emprego, os sindicatos, as escolas e o serviço militar- passavam por uma crise grave.
Enquanto isso, na margem sul e
oriental do Mediterrâneo, os movimentos islâmicos começaram a
tomar o lugar dos nacionalistas
como principais ideólogos e provedores de identidade cultural.
Em 1989, eles obtiveram seu primeiro avanço nas escolas francesas. A Irmandade Muçulmana e
outros grupos da
mesma índole começaram a erguer, peça por peça, uma fortaleza
cultural nos "subúrbios islâmicos" franceses.
Usar o véu dentro da escola era
um meio de erguer uma barreira
cultural e de ostentar um sinal de
"passagem proibida". Como seus
homólogos no
Egito e na Argélia,
A Irmandade Muçulmana afirmava
que a educação
não levava a mais
do que à adulteração cultural, à
traição da identidade islâmica,
traição que nem
sequer seria recompensada com
empregos.
Assimilar-se à cultura francesa
equivalia à apostasia: o véu era a
forma de restabelecer, no país da
irreverência, a comunidade dos
crentes dentro da qual seria possível encontrar uma esposa crente
(vale notar que, na França, diferentemente do que acontece nos
países vizinhos do outro lado do
Reno ou do canal da Mancha, a taxa de casamentos "mistos" supera em muito a de casamentos entre membros da mesma comunidade), ter filhos crentes e unir-se
ao que muitos enxergavam como
as grandes causas do mundo muçulmano, como a Palestina, a Bósnia e o jihad na Argélia.
Aumentaram as
pressões exercidas
contra os "maus
muçulmanos"
que não defendiam o véu ou
contra os jovens
que não faziam jejum no Ramadã.
Ao mesmo tempo, começaram a
ser divulgados vídeos em que se
elogiava o jihad
contra os infiéis de
modo geral e, em
particular, contra
os judeus.
Em sala de aula,
o ensino sobre o
Holocausto era
objeto de hostilidade. Nos pátios
das escolas, estouravam brigas com
jovens judeus a
cada vez que, na
noite anterior, a Al
Jazira tivesse difundido cenas da
repressão israelense na faixa de
Gaza.
Esses fenômenos foram vistos
como extremamente preocupantes. Tiveram alcance limitado,
mas seu impacto sobre a opinião
pública foi devastador.
Nem todas as estudantes que se
cobrem com o "hiyab" aprovam
essas atitudes, mas o véu faz parte
de uma divisão da comunidade
escolar, divisão que segue linhas
de separação religiosas que estão
conduzindo à justaposição de
segmentos hostis que têm por objetivo enfraquecer o próprio propósito da educação: proporcionar
aos alunos conhecimentos comuns que lhes permitam construir seu próprio eu, seu futuro e
sua liberdade como cidadãos.
Os véus, os solidéus, os crucifixos e outras coisas do gênero não
passam de sintomas. A origem
dos conflitos é social e está relacionada à incapacidade da economia francesa (e européia) de chegar às camadas mais pobres da
sociedade, freqüentemente formadas por imigrantes recentes.
Nesse contexto, a proibição de
sinais religiosos ostensivos nas escolas públicas não passa de uma
simples medida de conservação
destinada a refrear a fragmentação do tecido escolar. Ela não foi
pensada para servir de cura para
todos os males sociais, mas para
dar início ao processo que conduza a um novo pacto laico entre todas as crianças e jovens do país,
seja qual for sua origem e religião,
na véspera do centenário das leis
de 1905 que separaram a igreja do
Estado e abriram caminho para a
modernização da França.
Sejam quais forem as dificuldades, esperemos que o século atual
seja testemunha de um novo caldeirão de cultura que, sem dúvida, terá mais sabor de cuscuz, o
tradicional prato norte-africano.
Gilles Kepel é professor catedrático sobre o Oriente Médio no Instituto de Estudos Políticos de Paris.
Tradução de Clara Allain
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