São Paulo, domingo, 11 de abril de 1999

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Imagem de Kosovo traz de volta pesadelo

DANIEL COHN-BENDIT
do "Libération"

Se o reconheço, não suporto. As imagens que chegam de Kosovo despertam minha memória e trazem de volta pesadelos que eu pensava estarem enterrados para sempre. Foi a mesma coisa na Bósnia, em Srebrenica. E agora, em Pristina. A seleção, a deportação, os trens lotados, as execuções.
Genocídio? André Frossard dizia que "genocídio é quando se mata alguém porque ele é feio". Eles os deportam, os massacram, os violam, os executam porque nasceram kosovares, e não sérvios. Estou ferido. Ferido por nossa impotência, ferido por essas imagens intoleráveis e ferido porque assisto ao êxodo dos kosovares com uma angústia que me sufoca -e se isso for definitivo? Ferido pelos "pacifistas" que pedem uma trégua na Páscoa. Uma trégua para os cristãos e massacres para os muçulmanos? É demais, é insuportável.
Estou ferido, aflito e magoado pela hipocrisia daqueles que se dizem chocados com a limpeza étnica, mas que ousam atribuir à Otan e ao "demônio americano" a responsabilidade pelo agravamento dessa "catástrofe humana".
Uma catástrofe é algo "inevitável", enquanto uma deportação é pensada, organizada e realizada por homens. Depois de organizar por meio do sangue a divisão da Bósnia, o regime nacionalista sérvio pôs mãos à obra, com determinação total, para deportar uma população inteira de seu próprio país. Devemos permitir que prossiga em seu intento? Devemos lhe dar razão, negociando a partilha de Kosovo? Não, não, não. Eu imploro, grito. Também eu tenho medo da escalada militar, mas fico apavorado diante da idéia de me ver ao lado daqueles que se negaram a ajudar a República espanhola em 1936 ou dos que aceitaram o aperto de mão entre Hitler e Stálin.
Aprovo o engajamento dos Estados europeus ao lado da Otan. À brutalidade devemos responder com nossa solidariedade radical com as vítimas. Sempre poderemos questionar a validade e a eficácia da estratégia militar escolhida pelos generais da Otan; os fatos e a história vão decidir a questão. Mas devemos responder àqueles que denunciam a violação do direito internacional pela Otan ou àqueles que afirmam as convicções mais pacifistas: "O que fazer? Milosevic vem planejando a limpeza étnica de Kosovo há anos, e vocês falam em negociações". Enquanto fazia de conta que negociava em Rambouillet, Milosevic continuava a purificar Kosovo. Antes do início do ataque, 60 mil kosovares já erravam pelas montanhas. Centenas de milhares foram forçados a fugir nos anos anteriores.
A ação por terra é um imperativo que se impõe, e já. Os riscos não estão à altura de certas comparações que vêm à tona aqui e ali. Não estamos em 1942, e a pequena Sérvia não tem a potência de uma Alemanha hitlerista. Milosevic dirige com brutalidade um país pequeno, enfraquecido por sanções econômicas, totalmente isolado dos países europeus, que condenam a barbárie das tropas regulares e irregulares do regime sérvio.
Mesmo a Rússia, atrapalhada com a difícil convivência das minorias em seu próprio solo, apóia esse "aliado" incômodo apenas da boca para fora.
É preciso dizer à população sérvia que ela está enganada. Não defende uma causa justa. Ela não trava uma guerra de independência, nem resiste contra uma coalizão "imperialista". Não, os europeus não podem, nem devem ceder.
É compreensível que, para os sérvios, a independência pura e simples de Kosovo não seja algo cuja necessidade se evidencie por si só. Mas o retorno de todos os kosovares a sua terra deve ser a condição inapelável para a abertura de negociações. É preciso criar em Kosovo uma zona sob proteção militar -protetorado temporário sob a égide da União Européia- e, ao mesmo tempo, levar adiante uma ofensiva diplomática. Adiar o envio das tropas talvez equivalha a torná-la impossível amanhã.
O conflito bósnio já testemunhou a valsa-hesitação dos principais governos europeus. Essa atuação desordenada custou a vida de mais de 100 mil pessoas. A implosão da potência soviética não apenas estabeleceu a liderança americana no mundo, como também permitiu a ascensão de outra potência, a Europa, que tem por vocação integrar o conjunto dos países do Leste Europeu.
As crises impõem soluções ousadas: não poderíamos imaginar que se proponham às diferentes populações da antiga Iugoslávia fórmulas de integração ao conjunto europeu? Uma conferência internacional reuniria os países dos Bálcãs para discutir as possíveis modalidades de uma associação mais estreita com a Europa -com, é claro, contrapartidas draconianas: desarmamento, respeito pelas minorias e pelos direitos do ser humano, democracia política.
Ouço as Cassandras implorando que eu modere meu discurso, "para não perder o apoio de parte de meu eleitorado dividido e cético".
Neste momento, porém, meu medo maior é perder minha alma e minha razão de ser. Tenho medo de não mais conseguir olhar nos olhos as famílias de kosovares que estamos acolhendo em Frankfurt há anos. Não quero viver numa Europa que colabora com Milosevic. Não quero esperar 30 anos para ver esse ditador sangrento finalmente apresentar-se diante do Tribunal Internacional de Haia.
Ajudar os kosovares é salvar Kosovo, partir para sua reconquista à força, em terra. É acolher os refugiados, protegê-los, cuidar deles, reconfortá-los. É ser mais humano e menos político. A Europa é um projeto de civilização; precisamos estar à altura de nossos sonhos.
²


Daniel Cohn-Benditliderou a revolta estudantil de 68 na França. Ele é eurodeputado e lidera a chapa dos Verdes nas eleições européias.



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