São Paulo, domingo, 11 de abril de 1999

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OPINIÃO
Para ex-líder soviético, vitória na Guerra Fria "subiu à cabeça' dos EUA, e Rússia deve alertar para os riscos do uso da força
Bombas da Otan abalam ordem mundial

MIKHAIL GORBATCHOV
especial para a Folha

Os mísseis e as bombas da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) que estão sendo despejados sobre a Iugoslávia constituem uma guerra contra um Estado soberano.
A Carta das Nações Unidas aprova uma ação desse tipo apenas para a autodefesa ou como consequência de uma sanção imposta pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas. Nenhum desses dois casos se aplica à Iugoslávia.
A Iugoslávia está envolvida em um processo complexo, originado em um conflito interno. Porém há dezenas de outros conflitos parecidos em curso em outras partes do mundo, alguns deles apenas latentes, outros completamente em chamas. Se a atual atitude da Otan fosse aplicada em todas essas situações, o mundo deslizaria para uma nova Guerra Fria, cujos perigos são imensos.
Aqueles que querem demonstrar sua determinação para encarar o conflito na Iugoslávia deveriam recordar que os elementos a serem utilizados para solucionar uma situação desse tipo são principalmente visão e responsabilidade. O principal problema da atual política em relação à Iugoslávia é a carência desses elementos. Em resumo, o defeito fundamental é a falta de um pensamento estratégico.
Aqueles que, na Casa Branca e em Bruxelas -e, em um sentido mais amplo, na Europa-, planejaram os bombardeios contra a Iugoslávia se equivocam ao pensar que podem atacar impunemente Estados soberanos. Fazer tal coisa pode levar a um beco sem saída, do qual será muito difícil escapar.
O general Mackenzie, comandante das forças da ONU para a manutenção da paz na Bósnia, qualificou de inútil e inoperante o uso da força para resolver a crise na Iugoslávia. Esse militar conhece a Iugoslávia e os sérvios.
Os bombardeios da Otan são triplamente perigosos, porque suas consequências são imprevisíveis para a Iugoslávia, para a Europa e para toda a comunidade internacional. Nos estudos para explicar ao mundo a necessidade da operação militar da Otan contra a Iugoslávia, fica claro que os Estados Unidos deixaram subir à cabeça sua vitória na Guerra Fria. Nos últimos anos, eu tenho criticado muitas vezes a política exterior da Rússia. No entanto, apóio agora o primeiro-ministro, Ievguêni Primakov, porque ele está mantendo sob controle a situação no país. Ao mesmo tempo, sua postura diante da crise da Iugoslávia é construtiva e expressa o interesse não apenas da Rússia, mas de toda a Europa e do resto do mundo.
A Rússia deverá continuar com a missão de paz de Primakov e manter-se em estreito contato com os membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, assim como com os dirigentes dos países europeus que integram a Otan. Terá, também, que continuar um diálogo ativo com os governantes iugoslavos. Não devemos colocar a Europa em perigo e, por isso, não podemos permitir que se continue bombardeando a Iugoslávia somente porque alguns Milosevics ou seus regimes pareçam inconvenientes a alguns interesses.
É essencial que os países importantes não atuem hoje com os critérios que foram aplicados durante a Guerra Fria. Fazer isso seria tão irresponsável como disparatado. Nos custou muito tempo e trabalho solucionar os conflitos de importância menor do que o da Iugoslávia, porém, com moderação e paciência, foi possível encontrar soluções políticas duradouras.
A Otan decidiu agora usar a força, e a Rússia deve advertir a comunidade internacional sobre os perigos dessa atitude. Não é somente uma questão de "irmandade eslava". A questão é, nem mais nem menos, a paz.
Se a Iugoslávia pedir ajuda à Rússia em uma situação de crise, Moscou deverá analisar a possibilidade de responder a esse pedido. A natureza dessa ajuda dependerá do que for requerido pela Iugoslávia e da situação. Poderia ser, por exemplo, fornecimento de armas.
As ações da Otan na Iugoslávia revelam a verdadeira filosofia de sua doutrina militar e de sua política. Por essa razão, a Rússia deveria empreender uma revisão de sua estratégia e de suas defesas, incluindo também o reexame de todos os tratados prévios.
Quando os interlocutores da Rússia dizem uma coisa e fazem outra, quando decidem despreocupadamente bombardear Estados soberanos, nós deveríamos nos perguntar: o que ganhou a Rússia ao perseguir uma política de cooperação mundial e de acordos? A resposta é que ganhamos apenas a dissolução da União Soviética.
O que poderá acontecer se a desconfiança começa a dominar nos assuntos mundiais, se são anulados todos os acordos?
Hoje em dia tudo está entrelaçado na ordem mundial: se começam a ser rompidas as conexões existentes, as possibilidades do que pode sobrevir são impensáveis. (IPS)
²


Mikhail Gorbatchov, ex-líder soviético (1985-1991), promoveu a abertura política da extinta União Soviética e ganhou o Prêmio Nobel da Paz em 1990. Atualmente preside a Fundação Gorbatchov.



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