São Paulo, sábado, 11 de setembro de 2004

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AMÉRICA LATINA

No conglomerado de 20 milhões de habitantes, 18 gangues se especializam em fazer reféns e cobrar resgates

Cidade do México vira a capital do seqüestro

TIM GAYNOR
DO "INDEPENDENT", NA CIDADE DO MÉXICO

Reclinado em uma cadeira em seu escritório na Cidade do México, o analista de sistemas Roberto Garcia franze o cenho ao lembrar dos telefonemas. As instruções eram simples: "Atenda antes do segundo toque, ou espancaremos seu sobrinho até sangrar. Se não pagar o resgate, ele será devolvido para a família aos pedaços."
Arrastado das ruas da capital mexicana quando saiu para comer um hambúrguer perto de sua casa, no modesto bairro de Iztapalapa, o jovem passou cinco semanas amarrado e vendado. Ameaçada, agredida e solitária, enquanto se esforçava por juntar o milhão de pesos [cerca de R$ 250 mil] exigido em resgate, a família Garcia se viu arremessada a um mundo novo e aterrorizante, que está se tornando cada vez mais comum para os mexicanos.
"Acreditávamos que não estaríamos vulneráveis a seqüestros porque não temos dinheiro suficiente para isso", relembra Garcia, 64, um homem de fala mansa, sobre o período. "Agora, os pobres, a classe média e os ricos estamos todos sob ameaça. O seqüestro se tornou uma indústria."
Em recente relatório, a consultoria internacional de risco Kroll estimou que cerca de três mil pessoas foram vítimas de seqüestros no México no ano passado, cerca de 20 vezes o número reportado à notoriamente corrupta polícia mexicana, o que deixa o país de 100 milhões de habitantes, atrás apenas da Colômbia, uma nação dilacerada pela guerra civil, nas estatísticas de seqüestro.
Em junho, a onda de seqüestros causou as maiores manifestações de rua vistas no México em uma década, que levaram à renúncia do ministro da Segurança Pública. Os seqüestros também serviram de pano de fundo a "Man on Fire" [Homem em Chamas], filme de suspense tenso dirigido pelo britânico Tony Scott [que ainda não estreou no Brasil].

Atividade organizada
Embora os seqüestros sejam muito freqüentes em todo o país, a vasta capital mexicana é a zona mais atingida. Maior cidade da América Latina, com 20 milhões de habitantes, a Cidade do México é cercada por um labirinto estonteante de favelas, com barracos de blocos de concreto. A cidade abriga 18 gangues bem organizadas de seqüestradores, que não param de ampliar a gama de vítimas a que visam.
Empregando uma ampla teia de conspiradores, entre os quais policiais, funcionários de bancos, empregados domésticos e seguranças em condomínios residenciais de toda a capital, essas quadrilhas estabelecem perfis detalhados para suas vítimas, o que permite que escolham momentos favoráveis para a operação, e que estabeleçam pedidos realistas de resgate. Se no passado os seqüestros costumavam ser cíclicos, os analistas dizem que a atividade agora ocorre durante todo o ano.
"Os seqüestros costumavam se intensificar perto das festas, como o Dia das Mães, o Natal e a Semana Santa, porque os criminosos precisavam de dinheiro para a farra", diz Max Morales, analista de segurança do México. "Mas este ano começou com a libertação de duas pessoas em 4 de janeiro, e não há mais períodos mortos."
O mercado de resgates já foi avaliado em mais de US$ 100 milhões ao ano. Isso vem atraindo muitos criminosos oportunistas, da Cidade do México inteira e de outras regiões do país. As quadrilhas emergentes têm mentalidade menos empresarial e mais emocional do que as tradicionais e, como resultado, são mais violentas.
Desde o começo de 1996, seqüestradores mexicanos mataram a tiros, facadas e por estrangulamento mais de 160 de seus reféns. Mais de metade dos crimes ocorreu nos três anos anteriores, que constituíram um pico de atividade criminal no país. Em um caso recente, que enojou os mexicanos já saturados de crime, dois meninos foram mortos a tiros e tiveram seus corpos abandonados em uma caçamba de entulho, mesmo depois que seus pais pagaram US$ 600 mil em resgate.
Outro caso, em julho, envolveu o seqüestro e o assassinato de Carmen Gutierrez, escolhida como Mulher do Ano no México em 1997. Ela foi seqüestrada quando saía de seu pequeno edifício. Os captores ficaram receosos, em meio às negociações, e decidiram estrangulá-la, abandonando o corpo em um canal nas cercanias da cidade. Depois, percebendo que ela não havia morrido, seguraram sua cabeça sob a água até que ela parou de respirar.
A maior parte das pessoas no México não consegue acreditar que alguém seja capaz de tamanha brutalidade. Algumas pistas quanto ao perfil dos seqüestradores surgiram recentemente quando detalhes sobre seis líderes de quadrilha chegaram ao jornal "Reforma", vindos do AFI, o serviço federal de investigações mexicano. Os perfis eram os de criminosos veteranos com longas fichas incluindo assalto, roubo, extorsão e assassinato, prisioneiros por longos anos no brutal sistema penitenciário mexicano.
Capturados em operações separadas no primeiro semestre deste ano, os líderes de quadrilha eram conhecidos por apelidos comuns no submundo latino-americano, como El Alacran (O Escorpião) e El Duende. Portavam armas sofisticadas, como submetralhadoras Uzi, pistolas Colt, Beretta e Taurus de alta potência, e fuzis de assalto AK-47, conhecidos na gíria das quadrilhas como "cuerno de chivo" ou "chifre de bode", devido ao pente curvo de munição que os alimenta.

Devoção macabra
Como no filme de Scott, o culto a santa Muerte tem papel importante na vida desses criminosos. A estátua de Nossa Senhora dos Mortos, armada com uma foice, é reverenciada por ladrões, criminosos e prostitutas no bairro de Tepito, uma das zonas de mais alta criminalidade na capital. Os bandidos oram pela proteção da santa. Rejeitado pela Igreja Católica, o culto se espalhou pelos bairros e atraiu policiais e políticos, que seguem seus rituais e usam tatuagens e amuletos que caracterizam os devotos. O culto tem seguidores até em Los Angeles.
Os seqüestradores não trabalham sozinhos. Os depoimentos das vítimas muitas vezes incluem relatos de "detenções" por policiais uniformizados que usam seus carros-patrulha para forçar a parada dos veículos dos seqüestrados. Entre os acusados de seqüestros recentes estão alguns funcionários antigos e atuais de diversos ramos das forças federais e municipais de segurança. Em junho, um grupo de oficiais de elite foi detido depois de seqüestrar um empresário usando falsos mandados de prisão.
Em uma tentativa de encobrir as pistas e proteger uns aos outros, os oficiais corruptos e de alta patente se uniram em um grupo secreto chamado La Hermandad. La Hermandad conecta as quadrilhas das favelas da Cidade do México aos escalões mais elevados do governo, os quais se beneficiam de empreendimentos criminosos que variam do tráfico de drogas à extorsão.

Corrupção de alto a baixo
"O que você precisa compreender", diz Morales, enquanto conversamos em seu escritório, bem acima do tráfego intenso no bairro de Colina del Valle, área nobre da capital, "é que a corrupção da polícia não é simplesmente questão de aceitar subornos para fechar os olhos ao crime, mas sim de envolvimento de policiais nos seqüestros. O pior é que pessoas encarregadas de reprimir a corrupção continuam a tolerá-la".
O medo da corrupção nos escalões mais elevados dos órgãos de segurança é tão forte que o procurador geral da Justiça mexicana, Raphael Macedo, recentemente solicitou que microchips fossem implantados sob a pele dos 160 principais promotores e investigadores federais, para garantir que o acesso a um novo banco de dados sobre criminosos fosse seguro. Os aparelhos portam códigos únicos de identificação, para bloquear tentativas de impostores tentando ganhar acesso à rede.
Enquanto a comunidade policial mexicana continua a enfrentar dificuldades no combate à corrupção, que a ameaça de dentro, os mexicanos mais ricos dedicam cada vez mais atenção à proteção, recorrendo a empresas privadas de segurança que surgem em número cada vez maior, em um boom de mercado que movimenta centenas de milhões de dólares ao ano. Estima-se que até mil dessas empresas estejam oferecendo serviços de segurança no momento, e elas variam de organizações que provêm guardas armados de cacetetes para proteger o comércio a cerca de uma dezena de empresas que oferecem sofisticados pacotes de proteção total -os mais abrangentes incluem serviços de avaliação de risco, seleção e verificação de funcionários, e administração de emergências, eufemismo para designar negociações em caso de seqüestro.
Outro serviço altamente popular é a blindagem de carros. A principal especialista nesse mercado, a O'Gara-Hess & Eisenhardt, estima que haja 50 empresas que oferecem veículos blindados de primeira linha na capital mexicana, quase o dobro do total registrado cinco anos atrás. Empregam os materiais mais modernos, entre os quais kevlar, fibra de aramida e aço a prova de explosões e balas. Blindar carros europeus e americanos de luxo é uma indústria que movimenta US$ 28 milhões ao ano no México.


Tradução de Paulo Migliacci


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