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ARTIGO
Um relicário palestino
ELAINE SENISE BARBOSA
ESPECIAL PARA A FOLHA
A política não abandonou Iasser
Arafat na agonia e na morte.
Quando o líder palestino nada
mais podia falar, seu corpo converteu-se em alvo de narrativas
simbólicas que incidem sobre a
sucessão de poder na OLP e o futuro do movimento palestino. É o
conceito de relíquia que esclarece
o sentido dessas narrativas.
Relíquias são objetos ou corpos
pertencentes a um santo ou rei ao
qual se atribui o dom da realização de milagres ou simplesmente
o estado da graça em virtude de
contemplá-lo. Na Idade Média
não havia nada mais importante
para a afirmação de uma diocese
ou de uma monarquia que a posse
de uma relíquia, pois a sua presença indicaria a antigüidade de
um grupo, em oposição a concorrentes interessados em controlar
certa região e suas rendas, e também uma legitimidade sagrada,
expressão da vontade divina.
Disputas violentas e às vezes cômicas eclodiam em torno da produção e do controle de relíquias.
Na abadia inglesa de Glastonbury
"descobriu-se" o corpo do rei Arthur, no início do século 12, coincidindo com uma disputa por autonomia frente à monarquia e
uma abadia vizinha.
Na Espanha, dominada pelos
muçulmanos, um importante elemento que semeou o espírito da
Reconquista foi a "descoberta" do
túmulo do apóstolo Tiago, na região de Compostela, no século 10.
Segundo histórias anteriores,
Santiago apareceu em mais de
uma batalha dos cristãos contra
os mouros, garantindo a vitória.
O crescente movimento de peregrinação para um lugar que só
perdia em importância para Jerusalém e Roma financiou a edificação da catedral gótica. A Igreja,
responsável pelo empreendimento, assumiu a liderança da Reconquista e tornou-se fonte de legitimação das linhagens aristocráticas que disputavam a coroa.
Relíquias viajam e a legitimidade viaja com elas. Estevão (997-1038), o primeiro rei cristão da
Hungria, foi canonizado em 1083
e, durante o processo, seu corpo
foi retirado da cripta e seu braço
direito, removido e embalsamado. Quando da invasão turca, em
1241, a relíquia foi salva e transferida para a Croácia cristã. Em
1457, caiu sob domínio austríaco e
o antebraço foi separado do braço: a mão em Viena sinalizava a
subordinação dos húngaros.
Os sucessores presuntivos de
Arafat, Mahmoud Abbas e Ahmed Korei, carentes de apoio popular, precisam de outra fonte de
legitimidade. Durante a agonia do
líder, os dois deslocarem-se até
Paris para tocá-lo no leito de morte: é como se o sopro vital da liderança migrasse de corpo.
A controvérsia em torno do lugar do enterro concentrou a guerra simbólica. Israel vetou o sepultamento na Esplanada das Mesquitas, pois a presença do corpo
do "pai da nação" criaria um novo lugar sagrado de peregrinação
e legitimaria o projeto de um Estado Palestino com capital em Jerusalém. O governo israelense expressou sua preferência pela faixa
de Gaza, mais distante. A OLP retrucou com a Muqata.
Os dirigentes palestinos apresentam como provisório o lugar
do sepultamento, que seria uma
escala forçada do corpo antes da
sua transferência definitiva para
Jerusalém. No momento, a idéia é
reconstruir a mesquita arruinada
da Muqata, sacralizando o homem e produzindo um lugar de
peregrinação. A opção palestina
constrói uma narrativa de martírio e exílio, característica de muitos santos, que sofrem mas não
abandonam suas convicções. O
túmulo e a relíquia avalizam as
pretensões de sucessão dos seus
controladores.
Elaine Senise Barbosa é historiadora e
autora de "A Encruzilhada das Civilizações" (Moderna, SP, 1997).
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