São Paulo, sexta-feira, 12 de novembro de 2004

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ARTIGO

Um relicário palestino

ELAINE SENISE BARBOSA
ESPECIAL PARA A FOLHA

A política não abandonou Iasser Arafat na agonia e na morte. Quando o líder palestino nada mais podia falar, seu corpo converteu-se em alvo de narrativas simbólicas que incidem sobre a sucessão de poder na OLP e o futuro do movimento palestino. É o conceito de relíquia que esclarece o sentido dessas narrativas.
Relíquias são objetos ou corpos pertencentes a um santo ou rei ao qual se atribui o dom da realização de milagres ou simplesmente o estado da graça em virtude de contemplá-lo. Na Idade Média não havia nada mais importante para a afirmação de uma diocese ou de uma monarquia que a posse de uma relíquia, pois a sua presença indicaria a antigüidade de um grupo, em oposição a concorrentes interessados em controlar certa região e suas rendas, e também uma legitimidade sagrada, expressão da vontade divina.
Disputas violentas e às vezes cômicas eclodiam em torno da produção e do controle de relíquias. Na abadia inglesa de Glastonbury "descobriu-se" o corpo do rei Arthur, no início do século 12, coincidindo com uma disputa por autonomia frente à monarquia e uma abadia vizinha.
Na Espanha, dominada pelos muçulmanos, um importante elemento que semeou o espírito da Reconquista foi a "descoberta" do túmulo do apóstolo Tiago, na região de Compostela, no século 10. Segundo histórias anteriores, Santiago apareceu em mais de uma batalha dos cristãos contra os mouros, garantindo a vitória. O crescente movimento de peregrinação para um lugar que só perdia em importância para Jerusalém e Roma financiou a edificação da catedral gótica. A Igreja, responsável pelo empreendimento, assumiu a liderança da Reconquista e tornou-se fonte de legitimação das linhagens aristocráticas que disputavam a coroa.
Relíquias viajam e a legitimidade viaja com elas. Estevão (997-1038), o primeiro rei cristão da Hungria, foi canonizado em 1083 e, durante o processo, seu corpo foi retirado da cripta e seu braço direito, removido e embalsamado. Quando da invasão turca, em 1241, a relíquia foi salva e transferida para a Croácia cristã. Em 1457, caiu sob domínio austríaco e o antebraço foi separado do braço: a mão em Viena sinalizava a subordinação dos húngaros.
Os sucessores presuntivos de Arafat, Mahmoud Abbas e Ahmed Korei, carentes de apoio popular, precisam de outra fonte de legitimidade. Durante a agonia do líder, os dois deslocarem-se até Paris para tocá-lo no leito de morte: é como se o sopro vital da liderança migrasse de corpo.
A controvérsia em torno do lugar do enterro concentrou a guerra simbólica. Israel vetou o sepultamento na Esplanada das Mesquitas, pois a presença do corpo do "pai da nação" criaria um novo lugar sagrado de peregrinação e legitimaria o projeto de um Estado Palestino com capital em Jerusalém. O governo israelense expressou sua preferência pela faixa de Gaza, mais distante. A OLP retrucou com a Muqata.
Os dirigentes palestinos apresentam como provisório o lugar do sepultamento, que seria uma escala forçada do corpo antes da sua transferência definitiva para Jerusalém. No momento, a idéia é reconstruir a mesquita arruinada da Muqata, sacralizando o homem e produzindo um lugar de peregrinação. A opção palestina constrói uma narrativa de martírio e exílio, característica de muitos santos, que sofrem mas não abandonam suas convicções. O túmulo e a relíquia avalizam as pretensões de sucessão dos seus controladores.


Elaine Senise Barbosa é historiadora e autora de "A Encruzilhada das Civilizações" (Moderna, SP, 1997).


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