São Paulo, sexta-feira, 12 de novembro de 2004

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PALESTINA ÓRFÃ

ENTREVISTA

Tariq Ramadan, professor de estudos islâmicos, defende colegiado em lugar de outro líder carismático

Arafat cometeu erros políticos, diz filósofo

FERNANDO EICHENBERG
FREE-LANCE PARA A FOLHA, EM PARIS

Para o filósofo Tariq Ramadan, 42, suíço de origem egípcia, residente em Genebra e professor de estudos islâmicos na Universidade de Friburgo, Iasser Arafat deve ser lembrado como um líder fiel à seu povo, mas criticado por opções adotadas ao longo de seu combate pela causa palestina.
O polêmico pensador, já alcunhado de "predicador muçulmano", "neofundamentalista moderno" ou "ideólogo do comunitarismo", autodefinido apenas como um "muçulmano europeu", defende a instauração de uma autoridade colegiada na Palestina e um papel maior da Europa na questão do Oriente Médio.
Em entrevista à Folha, por telefone, de Barcelona, onde participava de um encontro da ONU sobre anti-semitismo, islamofobia e cristianofobia, Tariq Ramadan disse não prever alterações imediatas com a morte de Arafat, e defendeu uma mobilização cidadã mundial pela paz no conflito israelo-palestino.
 

Folha - Qual sua opinião sobre o homem e o personagem político Iasser Arafat?
Tariq Ramadan -
Em primeiro lugar, era um símbolo, alguém que não se pode deixar de não reconhecer o que representou num resistente combate de décadas por seu país, sempre vivendo em condições modestas.
Deve-se guardar essa imagem de um homem que foi bastante fiel à seu povo e que pagou um preço por isso. Mas não se pode, igualmente, deixar de levar em conta elementos problemáticos.
O primeiro concerne a administração dos negócios e das finanças. Havia muito clientelismo e utilização de dinheiro de uma forma que não correspondia ao que se espera de um Estado organizado ou de um líder de finanças.
O segundo está relacionado ao mandato de poder, ao exercício de autoridade discricionária, de aspectos democráticos nem sempre respeitados. A terceira coisa refere-se à execução de escolhas políticas, que no plano da história se revelaram equivocadas. Às vezes, tinha-se a impressão de que ele seguia agendas mais pessoais.

Folha - Quais foram seus erros políticos?
Ramadan -
Pode-se entender a entrada nos acordos de Olso. Mas os termos do acordo, desde o início, colocavam em perigo todo um processo. Era preferível resistir às primeiras condições e ganhar tempo do que se engajar em condições que levariam a impasses, o que acabou acontecendo.
Eu havia lido o texto do acordo e minha posição foi bastante reservada. Não estava confiante. Conversei com pessoas que haviam participado das primeiras discussões, Edward Said inclusive, e ninguém aprovava a forma como Iasser Arafat havia conduzido as negociações. Os acordos de Olso datam de 1991, e três anos depois, quando não havia quase mais esperanças para os palestinos, começam os primeiros atentados suicidas, em 1994.
Ainda assim, faço a distinção. Estamos no momento da morte de um homem que casou sua vida à uma causa. Devemos reconhecer isso, mas também não podemos negar as críticas. Estamos num período de transição, e o que virá na seqüência é fundamental.

Folha - Como o senhor analisa a transferência de poder?
Ramadan -
Minha resposta é que, sobretudo, não se deve ter no lugar outro líder carismático. Precisa-se de uma autoridade colegiada. Não de uma figura, mas de atores, de uma plataforma colegiada que amplie a representação no plano político dos componentes da sociedade palestina.
Precisa-se de um governo que esteja em contato com seu povo, que seja representativo, e que encaminhe proposições concretas. Hoje, se pergunta se as coisas vão piorar. Mas já é tão pior em relação à tudo que se podia imaginar, que dificilmente poderá piorar.
Desse ponto de vista, ao mesmo tempo em que se pode criticar aspectos da posição de Arafat, pode-se igualmente dizer que ele foi levado ao isolamento. Os estados árabes renunciaram, assim como a comunidade internacional. Por isso que se precisa de uma autoridade colegiada no sentido amplo das tendências da sociedade palestina. Hoje, não há mais pretexto para os EUA e israelenses não se engajarem em algo que seja uma fundamental revisão dos termos da paz no Oriente Médio.

Folha - O que vai mudar agora?
Ramadan -
Não vai mudar nada de imediato. Os países árabes que renunciaram não vão mudar radicalmente. Não se pode prever nada de novo no horizonte. O que é preciso é que uma nova voz alternativa se faça ouvir. O silêncio europeu torna a situação catastrófica. Bush fez uma declaração dizendo que é favorável à um Estado palestino, mas isso ele já havia dito. É preciso uma nova atitude da Europa em relação ao unilateralismo americano.

Folha - Qual a solução para o conflito no Oriente Médio?
Ramadan -
É preciso uma mobilização multidimensional. Uma via política alternativa à do apoio incondicional dos EUA. É preciso mobilização dos cidadãos. O conflito israelo-palestino é mundial. É preciso que os cidadãos do mundo se mobilizem, e que se ouça a voz de um povo oprimido.
Isso vem dos cidadãos, e não só dos Estados. Se quisermos uma política alternativa palestina, que seja uma resistência forte e não-violenta, é preciso que falemos.
Nosso silêncio produz a violência dos outros. No Iraque, gritava-se "parem com a guerra", e só. Mas, além da guerra, o que se faz hoje? Pouco. É hoje que o povo iraquiano precisa de manifestações em todas as ruas do mundo.

Folha - O sr. acredita que o islamismo radical vai ganhar força?
Ramadan -
Sim. Os radicais têm cada vez mais elementos para dizer "olhem a posição dos EUA, o silêncio da Europa". Temos de denunciar o radicalismo, e também a causa de nossas renúncias.


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