São Paulo, sexta-feira, 12 de novembro de 2004

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ANÁLISE

Com ou sem Arafat, a iniciativa continua sendo só de Israel

CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA

À parte o tremendo simbolismo histórico da morte de um personagem tão marcante como Iasser Arafat, o fato é que qualquer evolução no quadro da crise entre Israel e os palestinos continua dependendo, como ocorria com Arafat, de iniciativas (ou da falta delas) do outro lado, o israelense.
Israel é quem tem a força, o controle territorial, as armas e, ainda por cima, o apoio praticamente incondicional dos EUA, a única potência em condições de fazer mover as peças no sempre complexo xadrez do Oriente Médio.
Essa constatação foi ouvida pela Folha entre lideranças palestinas intermediárias, que exibem um sentimento de impotência, agravado mas não nascido da morte de Arafat, por mais que o seu título ("rais" ou presidente) tenha, no mundo árabe, um peso enorme.


Os palestinos estão cansados de ser os negros do Oriente Médio, e os judeus estão cansados de recolher pedaços de corpos despedaçados por bombas


Mas Arafat estava há três anos confinado nas ruínas de sua Muqata, com pouco controle sobre o mundo palestino que fosse além das poucas dependências ainda habitáveis e em funcionamento da sede eternamente provisória da Autoridade Palestina.
Para os palestinos, o fato de o atual governo israelense ter descartado Arafat como interlocutor para o processo de paz não significa necessariamente que este possa ser retomado agora que o líder morreu. O raciocínio tem a lógica de um teorema:
1 - Arafat era um dos poucos, talvez o único, líder árabe eleito em pleito certificado pela comunidade internacional como livre e justo. Certificação dada por observadores da União Européia, dois dos quais desempenham hoje papel de primeira linha na Espanha: Miguel Ángel Moratinos, enviado especial para o Oriente Médio da UE, hoje chanceler do governo socialista, e Manuel Marín, então vice-presidente da Comissão Européia, hoje presidente do Congresso de Deputados.
O ex-presidente norte-americano Jimmy Carter também emitiu seu veredicto favorável, ao escrever, para "The New York Times", que Arafat se tornara presidente "em eleições democráticas, bem organizadas, abertas e justas".
2 - Essa certificação e essa legitimidade não impediram que, primeiro, os grupos palestinos radicais lançassem pouco depois uma onda de atentados contra Israel, o que acabou sendo fator decisivo para a eleição de Benjamin Netanyahu, então o líder da direita israelense.
Atentados mais Netanyahu (depois Sharon e mais atentados) liquidaram o processo de paz.
Ou seja, a legitimidade de Arafat não foi fator suficiente para fazê-lo avançar. Como imaginar que o sucessor possa conseguir algo diferente, ainda que legitimado pelas eleições prometidas pela liderança palestina interina?
A única chance que o novo líder teria seria negociar de acordo com os termos de Sharon.
Mas essa hipótese significa que o novo líder palestino teria que trair o sentimento de sua própria base. Veja-se, a propósito, o que pensa Ian Lustick, com a experiência de quem foi conselheiro do Departamento de Estado norte-americano para o Oriente Médio durante cinco administrações: "as falhas de Arafat são, acima de tudo, um reflexo das circunstâncias dos palestinos, e qualquer um que tente fazer algo diferente do que ele fez, nas mesmas circunstâncias, fracassaria da mesma maneira".
Quais são as "circunstâncias dos palestinos"? A ocupação israelense em parte de seus territórios, com todo o custo em vidas e em dificuldades econômicas, o que, por sua vez, gera um sentimento de ódio que abastece os grupos terroristas de voluntários para o que eles consideram "martírio".
Desde que a negociação de paz entrou em agonia há oito anos, a seqüência atentados-repressão israelense-sacrifícios palestinos-atentados-repressão-sacrifício gerou uma escalada de ódio de parte a parte sem precedentes mesmo sabendo-se que as duas comunidades amam odiar-se.
Gerou também a consolidação da idéia de separação entre elas, de que o muro que Israel está construindo é a expressão mais concreta. O problema, no entanto, continua: primeiro, o território que tem que ser dividido é muito pequeno. Segundo, os palestinos reivindicam uma continuidade territorial que dê viabilidade econômica ao seu futuro Estado, e não a criação de "bantustãs", no modelo implementado na África do Sul do apartheid, em que pequenos encraves negros ficavam cercados de um grande território dominado pelos brancos.
Os palestinos estão cansados de ser os negros do Oriente Médio, e os judeus estão cansados de recolher pedaços de corpos despedaçados por bombas. Arafat era prisioneiro desse cansaço e da impossibilidade de transformá-lo em fator de negociação. Sua morte liberta-o, mas não muda, a princípio, os dados da equação.


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