São Paulo, sexta-feira, 13 de fevereiro de 2004

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Paquistão patrocinou uma rede clandestina de material nuclear

DA REPORTAGEM LOCAL

Três levantamentos revelaram ontem em detalhes a rede internacional de tráfico de componentes nucleares formada em torno do Paquistão. O assustador está no fato de essa máquina industrial clandestina não ter sido desmantelada a tempo de evitar a proliferação de tecnologia que pode ser usada com fins militares.
As informações foram publicadas pelos jornais "The New York Times" e "Le Monde" e pelo serviço online da rede britânica BBC. As três reportagens revelam que os EUA tinham indícios do tráfico há pelo menos 20 anos.
O escândalo se tornou público na semana passada, quando Abdul Qadeer Khan, o "pai" da bomba paquistanesa, confessou a venda ilegal de equipamentos para o Irã, a Coréia do Norte e a Líbia.
As reportagens ressaltam a facilidade com que Khan atuou e duvidam da versão oficial paquistanesa, de que ele teria agido sozinho e sem a cumplicidade de militares e governantes locais.
Khan foi encarregado em 1974 pelo Paquistão de produzir um artefato nuclear para se contrapor à bomba que a Índia explodira naquele ano. Como era prioridade nacional, teve todos os recursos que pediu e acabou comprando mais equipamentos do que necessitava. A partir dos anos 1980, ele passou de comprador a fornecedor. É possível que algo tenha caído em mãos de extremistas islâmicos. Segundo o "Le Monde", o governo paquistanês -que mantém presos três cientistas e três militares da reserva que trabalharam com Khan- nega que isso tenha ocorrido.
Mas Khan se relacionou, no início de sua carreira, com Mohammed Mahmoud, preso pelos EUA depois do 11 de Setembro por ter ao menos por duas vezes se avistado com Osama bin Laden.
O Khan Research Laboratory (KRL), nas imediações de Islamabad, "produziu uma tonelada de urânio altamente enriquecido. Se faltarem 15 ou 20 quilos no estoque, já teremos motivo para nos preocupar", disse o físico paquistanês A. H. Nayymar.
Khan tirou proveito de verbas oficiais não submetidas a nenhum controle. Tornou-se milionário e passou a operar com seus cúmplices de forma quase autônoma.
A prova definitiva de que a rede de traficantes existia foi obtida em outubro do ano passado. Foi quando, transportando seis contêineres recebidos da Malásia, um cargueiro de bandeira alemã, o BBC China, zarpou de Dubai com destino à Líbia.
O navio foi interceptado pela Itália e pela Alemanha a partir de informações dos Estados Unidos. Em lugar de "máquinas usadas", segundo a nota fiscal, os contêineres transportavam tubos para montar centrífugas. Centrífugas são máquinas que separam no urânio as partículas de isótopos mais pesadas, o U-235, para a produção de plutônio, matéria-prima para a bomba atômica.

Líbia
Depois da queda de Saddam Hussein, o ditador líbio, Muammar Gaddafi, decidiu fazer as pazes com os EUA e europeus e abandonar seu programa de armas de destruição em massa.
Há mesmo a possibilidade de a Líbia ter tomado a iniciativa de informar Washington de que estava esperando a encomenda.
Os tubos tinham sido produzidos na Malásia por uma empresa chamada Scomi Precision Engineering. Ela recebera a encomenda de uma outra empresa com sede em Dubai, a Gulf Technical Industries (GTI). Dela são sócios Bukhari Tahir, que se supõe ser o testa-de-ferro de Khan, e um cidadão britânico, Paul Griffin, antigo fornecedor do Paquistão e que nega ter feito negócios sem o prévio conhecimento de Londres.
A prova inequívoca de que a rede de traficantes fornecia centrífugas para o enriquecimento de urânio permitiu também que se fechasse um quebra-cabeças aberto desde o ano passado.
Recapitulando: Mohamed El Baradei, diretor da AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica, da ONU), esteve no Irã com técnicos que encontraram vestígios de plutônio numa centrífuga para fins civis, das que produzem combustível para usinas nucleares, com 5% de U-235.
Interpelado, o Irã disse ter recebido de terceiros o equipamento com o vestígio. A solução do enigma: o Paquistão se desfazia de centrífugas mais antigas, de alumínio, e passava a utilizar aparelhos de aço, de uma geração mais avançada. No mercado clandestino, acabou vendendo equipamento já usado para seus clientes iranianos. A Líbia também receberia máquinas de modelo antigo.
Segundo o "New York Times", caso implementasse seu programa idealizado em 1987 para a instalação de 50 mil centrífugas conectadas uma às outras, o Irã teria produzido plutônio para construir 30 bombas por ano.

"Gênio do mal"
Khan é uma espécie de "gênio do mal". No início dos anos 70, ele era um engenheiro químico sem maior conhecimento sobre tecnologia nuclear. Trabalhava na Holanda, em uma empresa chamada Physics Dynamic Research Laboratory (FDO). Esta, por sua vez, era terceirizada para a produção de partes de centrífugas para a Urenco, consórcio europeu de produção de combustível, integrado por britânicos, holandeses e alemães (a França tinha programa nuclear próprio).
Segundo a BBC, Khan dividia a mesma sala de trabalho na FDO com um fotógrafo, Frits Veerman. Passados mais de 30 anos, este declarou que, ao visitar o paquistanês em sua casa, notou que ele havia surrupiado da empresa projetos para a fabricação de centrífugas. Foi com base nesses projetos que ele produziu suas próprias máquinas perto de Islamabad e tornou-se um herói nacional no Paquistão.
(JOÃO BATISTA NATALI)


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