São Paulo, domingo, 13 de fevereiro de 2005

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ORIENTE MÉDIO

Jornalistas dizem ter dúvidas sobre a veracidade de vídeo da morte de menino; TV diz que polêmica é "maluca"

Imagem-símbolo palestina é questionada

France 2 - 30.set.2000/Associated Press
Imagem de TV mostra o palestino Jamal al Durah protegendo seu filho, Mohammad, durante uma troca de tiros em Netzarim, Gaza


DOREEN CARVAJAL
DO "NEW YORK TIMES"

Desde o início da segunda Intifada palestina, mais de quatro anos atrás, muitas crianças já morreram em fogos cruzados. Mas é a imagem angustiante de um apavorado garoto de 12 anos, a quem o pai tenta em vão proteger com seu próprio corpo, que possui o poder de ícone de uma bandeira hasteada em batalha.
Egito e Tunísia lançaram selos postais que mostram o garoto Muhammad al Dura, agachado, apoiando-se em seu pai, sob o ataque de uma saraivada de balas, em setembro de 2000. O Egito deu seu nome a uma rua, e homens-bomba, em seus vídeos de despedida, saudaram o menino como mártir.
Na França, longe das batalhas de rua da faixa de Gaza, a cena é uma imagem que vale mil argumentos. Corre nesse país uma discussão sobre se as imagens televisionadas de Muhammad al Dura são legítimas, se elas foram erroneamente interpretadas ou se, nas palavras de um acadêmico americano, não passam de encenação astuta, produto de algo que ele chamou de "Pallywood".
Não é de hoje que fotos de batalha constituem armas potentes da mídia, e algumas das imagens de guerra mais memoráveis já suscitaram dúvidas quanto a sua autenticidade. No centro da discussão está a rede de TV estatal France 2 e seu correspondente em Jerusalém, Charles Enderlin, que afirma que as críticas acirradas feitas às imagens exclusivas do garoto motivaram ameaças de morte contra ele (Enderlin).
As imagens do confronto ocorrido nas ruas de um ponto distante na faixa de Gaza vêm sendo dissecadas em livros e no universo dos blogs, onde as críticas são expressas sem meias palavras. O próprio vídeo vem sendo explorado por um pequeno serviço de notícias israelense em língua francesa, a agência de notícias Metula, que alugou um cinema para poder estudar as imagens de perto.
Um documentário alemão de 2002, "Three Bullets and a Child: Who Killed the Young Muhammad al Dura?" (Três Balas e Uma Criança: Quem Matou o Jovem Muhammad al Dura?), procurou responder a dúvidas em relação a quem matou o menino, se foram israelenses ou palestinos.
A discussão ganhou ímpeto novo na semana passada, quando um editor francês conhecido e um produtor da televisão independente escreveram um artigo em tom cauteloso no jornal "Le Figaro", expressando dúvidas quanto à autenticidade do vídeo. "Essa imagem exerceu grande influência", disse Daniel Leconte, ex-correspondente da France 2. "Se ela não significa o que nos foi dito, então é preciso descobrir a verdade." Leconte escreveu o artigo no "Figaro" com Denis Jeambar, editor-chefe da revista "L'Express", semanas depois de executivos da France 2 terem autorizado os dois a assistirem à integra do vídeo filmado, num total de 27 minutos.
Isso aconteceu em outubro, mas seus comentários só vieram a público depois de eles os oferecerem ao "Le Monde", que, de acordo com o editor da página de opinião do jornal, Sylvain Cipel, rejeitou a oferta. Cipel qualificou a polêmica toda de "bizarra" e disse que ela foi movida pela agência de notícias israelo-francesa.
Quando a notícia foi posta no ar pela primeira vez, a France 2 ofereceu suas imagens exclusivas de graça às redes de televisão mundiais, dizendo que não queria lucrar com elas.
As cenas foram filmadas por um cinegrafista palestino da France 2, Talal Abu Rahma, que foi o único a captar imagens do que Enderlin, à época, descreveu como sendo a morte de um menino por disparos feitos desde uma posição israelense. Enderlin não estava presente durante o tiroteio.
A produtora alemã Esther Schapira, de Frankfurt, disse que em 2002, quando preparava seu documentário, tentou, sem sucesso, assistir a uma cópia mestre da fita. Ela comentou que ficou espantada quando a France 2 não a quis fornecer, já que as redes de TV européias têm por hábito trocar materiais. "Se não há nada a esconder", perguntou, falando da relutância inicial da France 2, "de quê eles têm medo?"
Quando artigos críticos começaram a aparecer em publicações como "The Atlantic Monthly", dos EUA, Enderlin escreveu cartas insistindo: "Não transformamos a realidade. Mas, pelo fato de algumas partes da cena serem insuportáveis, a France 2 foi obrigada a cortar alguns segundos dela".
Enderlin afirmou que, sob muitos aspectos, o vídeo virou um prisma cultural: os espectadores enxergam nele o que querem enxergar. "É uma campanha", disse, "porque o vídeo foi usado pelos palestinos como símbolo, como instrumento de propaganda."
Richard Landes, professor da Universidade de Boston especializado em culturas medievais, estudou as imagens completas filmadas por outros órgãos de mídia ocidentais no mesmo dia, que incluíam cenas do menino. "Poderíamos discutir cada quadro", disse. Depois de assistir três vezes às cenas que envolvem Muhammad al Dura, ele concluiu que elas provavelmente foram falsificadas, ao lado das imagens, contidas na mesma fita, de choques de rua e resgates com ambulâncias. "Acabei por perceber que os cinegrafistas palestinos, especialmente quando não há ocidentais presentes, praticam sistematicamente a encenação de cenas de ação", disse, descrevendo as imagens como cinema de "Pallywood".
Enquanto essas dúvidas eram levantadas, alguns dos executivos da France 2, reservadamente, criticaram a comunicação do canal. Na semana passada eles exibiram para o "The International Herald Tribune" a fita original do incidente, de 27 minutos de duração e que inclui cenas separadas de jovens atirando pedras. As imagens do pai e filho sob ataque duram vários minutos, mas não mostram a morte do menino claramente. Há um corte na cena que os executivos atribuíram aos esforços do cinegrafista para conservar a bateria da câmera, que estaria fraca.
Quando Leconte e Jeambar assistiram ao vídeo na íntegra, chamou sua atenção o fato de não haver nenhuma cena mostrando a morte do garoto. Mas eles escreveram que não se convenceram de que a cena teria sido encenada, apenas que "a famosa "agonia" que Enderlin afirma ter sido cortada da montagem não existe".
Para rebater as críticas, a France 2 convocou uma coletiva de imprensa em novembro e preparou uma pasta de fotos mostrando as imagens quadro a quadro, incluindo ampliações de algumas partes, para responder aos céticos como Landes, que afirmou que não havia sangue visível.
A emissora também mandou um jornalista de volta ao local, em outubro, para filmar o pai do garoto, Jamal al Dura, mostrando cicatrizes em seu braço direito e sua coxa direita. Eles compilaram imagens do pai enfaixado num hospital de Amã, onde recebeu a visita do rei da Jordânia. Mas críticos como o ex-repórter do "Le Monde" Luc Rosenzweig querem a opinião de um especialista médico independente.
"É uma história maluca", disse a vice-diretora geral da France 2, Arlette Chabot, sobre a polêmica. "A cada vez que respondemos a uma pergunta, surge outra. É muito difícil combater um boato. A questão é que, quatro anos depois do fato ocorrido, ninguém pode afirmar ao certo quem foi que matou o garoto, se foram palestinos ou israelenses."
Alguns meses atrás a France 2 registrou uma série de queixas por difamação contra alguns de seus críticos, mas não citou nomes individuais, descrevendo-os apenas como "X". A advogada da emissora, Benedicte Amblard, disse que a France 2 adotou essa estratégia devido à dificuldade de identificar legalmente os proprietários de websites, que se mostraram especialmente contundentes em suas críticas à emissora e a Enderlin. Mas isso encorajou os críticos como Philippe Karsenty, que é um dos alvos pretendidos da emissora, ao lado da agência Metula. Karsenty dirige um pequeno grupo de vigilância da mídia, o Media-Ratings, sediado em Paris, que pediu a renúncia de Chablot e Enderlin.
"Oferecemos 10 mil a uma organização humanitária a ser escolhida pela France 2 se esta puder provar para nós e uma comissão de peritos independentes que a matéria de 30 de setembro de 2000 mostra a morte da criança palestina", disse Karsenty, que pediu às autoridades francesas a abertura de um inquérito.
O Ministério da Cultura é um dos órgãos citados. Falando sob anonimato, um funcionário do governo comentou: "Não podemos tomar nenhuma atitude porque isso não é nossa missão ou nosso trabalho. A imprensa é independente, especialmente na tradição francesa."

Tradução de Clara Allain


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