São Paulo, domingo, 13 de fevereiro de 2005

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HISTÓRIA

Depoimento pode encerrar a chave do mistério que há 60 anos cerca o suicídio de um dos principais dirigentes nazistas

Americano diz que ajudou Göring a se matar

DAVID USBORNE
DO "INDEPENDENT"

Levou quase 60 anos, mas finalmente os historiadores podem ter encontrado a resposta a um dos enigmas mais duradouros que envolvem o fim do Terceiro Reich. De que modo Hermann Göring, primeiro comandante da Luftwaffe e arquiteto dos campos de concentração nazistas, conseguiu escapar da forca em Nuremberg, cometendo suicídio na véspera do dia marcado para sua execução, depois de ter passado mais de um ano detido?


"Eu dei a Göring a cápsula de cianureto que o matou antes de o verdugo fazê-lo. Não me orgulho disso"


Parece que um guarda americano de 19 anos, seduzido por uma beldade alemã de cabelos escuros, pode ter dado a Göring o veneno com que ele se matou.
Não é provável, e talvez mal seja crível, mas esta explicação atrasada de um dos maiores enigmas do século não veio de algum pesquisador da era Nuremberg, mas do próprio guarda, que hoje tem 78 anos, é metalúrgico aposentado e vive no sul da Califórnia.
"Fui eu", disse ele ao "Los Angeles Times." "Eu dei a Göring a cápsula de cianureto que o matou antes de o verdugo ter a chance de fazê-lo. Não me orgulho disso."
É uma versão da história que contradiz a multidão de teorias que há décadas cerca o suicídio de Göring. O fato de ele ter conseguido ludibriar a Justiça, roubando dos aliados a satisfação de executar um homem que encarnou a essência do mal nazista, deu lugar a livros e artigos de acadêmicos.
O fato de esse suicídio ter despertado tanto fascínio não chega a surpreender: Göring, tão vaidoso quanto era obeso, fez mais do que apenas erguer a Luftwaffe do nada e comandar suas operações. Ele foi vice-Führer e, do círculo mais próximo a Adolf Hitler, era a pessoa em quem este mais confiava. Ele impulsionou o esforço para a construção dos campos de concentração nazistas e foi um dos proponentes da chamada "solução final", que previa o extermínio de todos os judeus.
A execução dessa figura era antecipada como momento de definição no processo de catarse e punições do pós-guerra. No entanto, apesar da segurança rígida que o cercava, Göring conseguiu frustrar os esforços de justiça dos aliados. Se alguém o ajudou a fazê-lo, não surpreende que tenha mantido sua participação em silêncio -especialmente se fosse alguém do lado dos aliados.
Todos os personagens que teriam condições de corroborar a história que Herbert Lee Stivers contou ao jornal "Los Angeles Times" já morreram. Mas alguns estudiosos parecem dispostos a aceitar o que ele está dizendo.
Terá Stivers tido alguma intenção calculada quando tão dramaticamente subverteu a causa da Justiça do pós-guerra e, de fato, da própria história desse período? É nisso que consiste o que talvez seja o aspecto mais espantoso de sua história. Ele disse ao "LA Times" que deu a cápsula a Göring simplesmente para impressionar uma garota local bonitinha.
Dentre todas as teorias anteriores que surgiram para tentar explicar como Göring conseguiu a cápsula de cianureto, a mais aceita, apesar de ser a mais prosaica, reza que Göring, apesar de ter ficado detido em solitária, submetido a vigilância constante 24 horas por dia, teria conseguido, de alguma maneira, conservar uma única cápsula com ele durante seu julgamento inteiro. A cápsula teria ficado escondida em alguma parte de seu corpo ou debaixo de uma coroa dentária. Foi essa a explicação aventada pelo Exército americano após a investigação formal sobre o suicídio.
E foi de fato isso o que o próprio Göring afirmou numa carta escrita em sua cela antes de se suicidar, em 15 de outubro de 1946, pouco depois de ser condenado e sentenciado à morte por enforcamento. Na carta, ele se gabou de que estivera de posse do cianureto o tempo todo.
Mas as dúvidas persistiram, e uma pessoa que nunca acreditou que essa fosse a versão real foi Stivers. Ele permanece convencido de que foi usado para permitir que Göring frustrasse sua própria execução e conservou esse segredo durante esses anos todos, cercado por um profundo sentimento de remorso.
"Me senti muito mal depois do suicídio dele. Tive uma sensação estranha. Não achei que pudesse haver alguma maneira pela qual ele poderia ter guardado a cápsula em seu corpo", disse Stivers.
Foi o medo, parece, que levou Stivers a manter silêncio em relação ao que fizera. Mas 15 anos atrás ele contou o fato a uma de suas filhas, Linda Daley, e foi ela quem o convenceu a revelar a história enquanto ainda está vivo - e após saber que o episódio já prescreveu há muito tempo.
De acordo com seu relato, foi um misto de tédio e paixonite adolescente que o levou a intervir na história. Stivers era um entre um grande contingente de jovens soldados americanos que formavam o pano de fundo dos julgamentos de Nuremberg. Mas as tarefas que eles desempenhavam eram prosaicas.
Não era fácil para esses rapazes encontrarem algum tipo de diversão. Mas sempre havia as garotas. Stivers relata como certo dia conheceu uma moça, morena e linda, diante do prédio do clube de oficiais. Eles conversaram e flertaram um pouco, e ele lhe disse que era guarda dos réus no julgamento. Um dia depois, provou a ela que estava falando a verdade, levando-lhe o autógrafo de um prisioneiro pouco importante.
Na vez seguinte em que viu a garota, cujo nome era Mona, Stivers lhe deu outro autógrafo, dessa vez do próprio Göring. Então Mona lhe disse que tinha dois amigos que queriam muito conhecê-lo.
Eles se chamavam Erich e Mathias e estavam interessados em saber se Stivers se disporia a levar bilhetes para Göring, escondidos dentro de uma caneta-tinteiro. Ele concordou de boa vontade, não enxergando qualquer mal no plano e ainda interessado em causar boa impressão à garota.
No terceiro encontro deles, os dois rapazes disseram que queriam que ele levasse outra coisa a Göring, também escondida numa caneta: um medicamento, porque, afirmaram, Göring "era um homem muito doente". Stivers, não achando que isso fosse um grande problema, concordou. Mas, depois que o "remédio" chegou às mãos de Göring, Mona e os dois rapazes desapareceram. "Nunca voltei a ver Mona. Acho que ela me usou."
Duas semanas depois, no dia 15 de outubro de 1946, chegou a notícia chocante de que Göring tinha se matado e que a execução marcada para o dia seguinte se tornara redundante. Stivers imediatamente pensou ser responsável pelo que acontecera. Mas os investigadores em nenhum momento interrogaram a ele ou aos outros guardas -apenas perguntaram se eles tinham visto alguma coisa suspeita no comportamento ou nas atividades de Göring.
Stivers nunca deixou de sentir remorso e ansiedade. "Eu jamais teria levado alguma coisa que eu pensasse que pudesse ser usada para ajudar alguém a fugir da forca, se tivesse conhecimento disso", disse ele ao "LA Times". Mas ele tampouco conseguia crer na explicação oferecida pelo Exército: que Göring teria estado de posse do cianureto durante todo o tempo que passou preso.
De fato essa é uma hipótese difícil de acreditar. É verdade que Göring chegou à prisão muito robusto e que, à medida que foi perdendo peso, as dobras de pele solta poderiam ter facilitado um pouco a ocultação da cápsula em seu corpo. Mas, se ele estivera de posse do veneno todo esse tempo, por que teria demorado tanto para fazer uso dele?
Entre aqueles que pensam que a confissão de Stivers pode ser plausível está Aaron Breitbart, pesquisador do Centro Simon Wiesenthal, em Los Angeles. A história de Stivers, diz ele, "é maluca o suficiente para ser verdadeira. (...) Ninguém sabe ao certo quem fez aquilo, exceto a pessoa que o fez".
"Não soa como uma história inventada", disse Cornelius Schnauber, da Universidade do Sul da Califórnia. ""Parece ainda mais crível do que a versão comum segundo a qual o veneno teria ficado escondido numa coroa dentária."
Se Stivers se sente melhor, agora que tirou o peso da culpa de sua consciência, ele tem sua filha para agradecer por isso. Ela explicou ao "LA Times" como agiu: "Eu disse: "Pai, você faz parte da história. Você precisa contar essa história antes de morrer". Ele passou sua vida toda com esse peso na consciência".

Tradução de Clara Allain


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