São Paulo, domingo, 13 de fevereiro de 2005

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MEMÓRIA

Cidade foi maior vítima das bombas jogadas de aviões aliados; espaços vazios até hoje são lembranças da destruição

Dresden, 60 anos depois, ainda ressente bombardeio

TONY PATERSONE
DO "INDEPENDENT", EM DRESDEN

Rudolf Eichner tira uma peça enegrecida de xadrez do bolso. Tenta fazer um relato "objetivo" do que aconteceu com ele em Dresden na noite de 13 de fevereiro de 1945, mas lágrimas se formam em seus olhos azuis.
Anos depois daquela noite que passou encolhido, procurando abrigar-se do selvagem ataque aéreo e da tempestade de fogo que destruíram 75% da cidade e deixaram 35 mil mortos, Eichner, hoje com 80 anos, encontrou a peça de xadrez. Ela estava no pedacinho de terra em que ele ficou.
"É a única coisa que consegui salvar do bombardeio, e cada vez que olho para ela tenho emoções que não consigo controlar."
Em fevereiro de 1945, Eichner tinha retornado havia pouco do front russo. Tinha 20 anos e estava internado num hospital militar montado numa escola convertida. "Meu pai levou seu jogo de xadrez ao hospital para me ajudar a passar o tempo."
Eichner estava em melhores condições do que a maior parte da cidade para resistir ao bombardeio. O hospital tinha uma equipe de bombeiros, e ele e seus colegas feridos sobreviveram aos primeiros ataques quase ilesos. Apagaram dezenas de bombas incendiárias que penetraram o telhado do hospital. "Estávamos dispostos a continuar a combater os incêndios até tudo terminar", lembrou Eichner. Mas de manhã o segundo ataque começou.
"Não houve avisos das sirenes. Fomos pegos de surpresa. Corremos para os porões do hospital. Mas eles lotaram. Ficou insuportável. O aperto era tão grande que nem era possível cair."
O hospital foi atingido várias vezes. As luzes se apagaram e tijolos foram atirados para dentro do porão. "O ar estava sufocante, cheio de poeira e fumaça. Vi uma mulher se jogar sobre o berço de seu bebê, para proteger a criança."
Alguém gritou que o térreo estava em chamas. "Tínhamos de sair dali, mas não sabíamos aonde ir", conta Eichner. "Além do fogo, estava quase impossível respirar no porão, porque o incêndio estava sugando o ar para fora."
Ele e cinco outros soldados mergulharam no inferno da cidade velha. "Não podíamos ficar em pé. Ficamos de quatro, nos arrastando pelo chão", disse Eichner.
Os seis acharam um lugar atrás de uma pilha de entulho. "Cobrimos nossos rostos com trapos molhados e passamos as seis horas seguintes apagando o fogo que começava a toda hora no cabelo e na roupa." O asfalto da rua tinha derretido e arrancava os sapatos das pessoas. Muitos não conseguiam andar. Caíram ao chão e morreram sufocadas.
Quando amanheceu, a pele de Eichner estava coberta de feridas e bolhas. Tinha perdido todo o cabelo, cílios e sobrancelhas. Foi à estação ferroviária que, quando o ataque começou, estava lotada de refugiados. Viu cenas medonhas. "Havia corpos chamuscados por toda parte." Os cadáveres tinham os torsos enegrecidos, mas as pernas "cor-de-rosa, como carne de porco". Ali na estação, Eichner encontrou seu pai. Ele tinha desabado de exaustão depois de passar horas carregando corpos.
Nos dias seguintes, Eichner lembra de ter atravessado a praça central, a Altmarkt, onde guardas da SS cremavam 6.865 corpos empilhados. Hoje Eichner vai inaugurar uma placa na Altmarkt em memória aos mortos.
"A experiência do bombardeio foi muito pior do que o front russo", contou Eichner. "Lá, tínhamos medo, mas havia alguma liberdade de ação. No bombardeio, o pior foi a sensação de estar totalmente impotente. A única coisa que podíamos fazer era rezar."
Apesar do horror que viveu naquela noite, Eichner não culpa os britânicos. "Eles eram como eu: estavam apenas travando uma guerra e tentando acabar com ela o mais rapidamente possível."
Eichner aponta para os paralelepípedos de granito, que sobreviveram aos bombardeios. Quase todas as pedras estão marcadas por estilhaços de bombas. Em fotos dos anos 1950, Dresden parece uma paisagem lunar, com apenas três edifícios em meio a um mar de destroços.
Apesar da reconstrução da Frauenkirche (Igreja das Mulheres) e dos prédios barrocos, Dresden tem espaços verdes demais para que se possa ficar à vontade. "Para mim, Dresden é uma ferida aberta", diz Eichner.


Tradução de Clara Allain


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