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ÁSIA
Jonathan Spence, um dos maiores especialistas em história da China, diz que partido, em passo inédito, deixa ideologia de lado
"PC chinês se abre ao mundo por negócios"
CLÁUDIA TREVISAN
DE PEQUIM
O Partido Comunista da China
passa por um processo inédito de
internacionalização, não para levar a revolução socialista a todos
os cantos do mundo, como previa
Karl Marx, mas em busca de bons
e lucrativos negócios.
A internacionalização é um dos
principais elementos da mudança
de identidade do partido, afirma
Jonathan Spence, professor de
História da China na Universidade Yale, nos EUA.
A mudança de identidade do
Partido Comunista caminha para
algo que não se sabe ainda o que é.
Na opinião de Spence, é difícil definir hoje o que significa ser um
"leal membro" do partido.
Uma das principais autoridades
do mundo em história da China,
Spence acredita que reformas políticas serão inevitáveis no país,
mas observa que os chineses
aprenderam com a experiência da
ex-União Soviética que as mudanças têm de ser feitas de maneira lenta e segura.
"Com uma população imensa,
uma elevada quantidade de migração interna e uma pobreza tão
grande no campo, eles sabem que
têm problemas sociais colossais,
que provavelmente não serão
bem servidos no momento com
mudanças políticas", declarou
Spence à Folha em entrevista por
telefone, cujos principais trechos
são publicados a seguir.
Folha - Qual a importância real do
encontro do Congresso Nacional do
Povo?
Jonathan Spence - Pelo menos
ele permite que alguns assuntos
venham à tona e que temas controvertidos sejam discutidos.
Apesar de ninguém votar contra,
algumas vezes vemos real oposição. Outras vezes, você pode captar um pouco do que os delegados
pensam, mesmo que eles não votem contra o governo. É interessante ver algumas das discussões.
Folha - De alguma maneira eles
podem influenciar o que o governo
central pensa e decide?
Spence - Eu diria que um pouco.
Eles têm alguma influência. Se há
uma oposição realmente forte, ela
definitivamente será importante.
Do contrário, o governo espera
ter um grande apoio da maioria
desse grupo. Mas pode haver alguma exceção.
Folha - Qual é o grau de controle
do Partido Comunista sobre o Congresso Nacional?
Spence - Creio que é muito forte,
porque há principalmente membros do partido no Congresso,
mas há outros delegados, que representam outros interesses.
A maioria é de leais membros
do partido. Mas não temos mais
certeza do que isso significa. Você
pode abertamente discordar da
orientação do governo e ter opiniões bem diferentes [e ainda assim ser um leal comunista]. O ex-premiê Zhao Zyiang, que morreu
há algumas semanas, tinha um
enorme grau de discordância
com o governo central, mas várias
pessoas no Congresso devem se
identificar muito com ele, apesar
de não dizerem isso claramente.
[Zhao Zyiang perdeu o cargo de
primeiro-ministro em 1989, por
apoiar os protestos pró-democracia de estudantes na praça Tiananmen. Ficou em prisão domiciliar por 15 anos e morreu em janeiro, aos 85 anos].
Folha - O sr. crê que o PC está sofrendo uma crise de identidade?
Spence - O Partido Comunista
da China tem muitos altos e baixos em termos de identidade. Os
atuais líderes estão tentando impedir que qualquer problema grave ocorra na economia ou no
campo, e não estou seguro de que
eles tenham muito de uma identidade marxista-leninista nem se
eles diriam que a têm.
Acho que existe a memória de
um Estado e uma economia centralizados. Eles estão tentando superar alguns dos problemas econômicos e construir um enorme
novo mercado, com parceiros comerciais em todo o mundo.
O partido está se internacionalizando, o que é realmente interessante e novo. Mao [Tsé-tung]
nunca fez isso e Deng [Xiaoping]
fez, mas nada perto da escala
atual. Os chineses estão fazendo
negócios em todos os lugares,
Austrália, Canadá, Venezuela.
Folha - Brasil.
Spence - Sim, Brasil, Caribe, Sudeste Asiático, realizam discussões com a Índia sobre transferência de tecnologia. É um momento muito excitante. Provavelmente o próprio presidente Hu
Jintao não tenha senso muito forte de identidade. Creio que ele teria dificuldade em responder esse
tipo de pergunta.
Folha - Mas ao
mesmo tempo o
partido começou
uma enorme campanha de doutrinação, para estudo
das teorias marxistas-leninistas, de
Mao Tsé-tung e de
Deng Xiaoping. Isso não é um indício
de que eles estão
tentando reforçar
uma identidade comunista nesse período de rápidas
transformações?
Spence - Não
creio que isso seja
muito efetivo. As
pessoas que vão
aos cursos fazem
isso como uma
obrigação. Vão
porque são membros do partido,
mas não acredito
que seja ideologicamente convincente. Não é como
na Revolução Cultural [1966-1976],
quando houve sérias campanhas de
estudos e doutrinação na base do
partido. As teorias de Deng Xiaoping e de Jiang Zemin são entidades tão vagas que realmente não
há força ideológica nelas. Não é
como ser um leninista rigoroso.
Folha - Quando pergunto a jovens chineses filiados ao partido
sobre os motivos que os levaram a
isso, muitos respondem que é importante pertencer ao partido para
ter sucesso profissional.
Spence - Acho que eles estão respondendo a verdade. Por que ajuda a conseguir bons empregos?
Porque dá acesso à burocracia e
ao sistema bancário, por meio de
contatos do partido. Também dá
acesso importante a serviços médicos. Aparentemente, membros
do partido de todos os níveis têm
direito a boa assistência médica.
Folha - Cada vez menos questões
ideológicas e cada vez mais questões pragmáticas têm peso na decisão de se filiar ao partido?
Spence - Parece que sim.
Folha - Com a crescente internacionalização, é possível ao partido
manter o sistema político inalterado e reformar só a economia?
Spence - Vai ficar um pouco
mais difícil a cada ano. A questão
é saber qual é o
ponto de ruptura.
Eles têm a vantagem de poder observar o que ocorreu na antiga
União Soviética e
o que acontece
hoje na Rússia. É
um modelo interessante sobre o
que é seguro tentar e o que deve
ser tratado com
extremo cuidado,
em termos de mudanças econômicas e políticas.
Creio que a lição
que eles aprenderam é que, quanto
mais gradual for a
mudança política,
mais seguros eles
estarão no longo
prazo. A mudança
é provavelmente
inevitável, e quanto mais lentamente eles a atingirem,
melhor.
Com uma população imensa,
uma elevada
quantidade de migração interna e uma pobreza tão
grande no campo, eles sabem que
têm problemas sociais colossais,
que provavelmente não serão
bem servidos no momento com
mudanças políticas.
Você quer quer todos os migrantes internos votem, por
exemplo, mas não tem a menor
idéia do que isso significaria. Há
provavelmente 800 milhões de
pessoas se movendo pela China
em busca de emprego e trabalhando nas grandes cidades. Vai
dar direito de voto a todas elas? Se
for, o que vai ocorrer com a liderança política? Há 60 milhões de
pessoas no partido, cujos votos
seriam superados pelos dos camponeses e migrantes. Eles têm de
ser extremamente cuidadosos,
mesmo que estejam interessados
em reformas democráticas.
Folha - E eles estão?
Spence - É difícil dizer. Eles estão
conscientes de que certas mudanças são desejadas pela população.
O governo também observa Hong
Kong com grande interesse. Acredito que Hong Kong e Taiwan,
além de serem modelos econômicos, são experiências políticas que
eles estudam.
Folha - Que tipo de diferenças o
sr. vê entre a atual geração de líderes, de Hu Jintao, e as anteriores?
Spence - Deng Xiaoping [1904-1997] ainda tinha contatos com a
verdadeira geração revolucionária. Ele lutou na revolução. A geração de Jiang Zemin, 78, entrou
no partido na guerra civil, depois
da invasão japonesa, e eles não
passaram pelos primeiros estágios da revolução. A geração de
Hu Jintao e Wen Jiabao [ambos
com 62 anos] é formada por pessoas que não tiveram nenhuma
experiência na revolução como
ativistas, mas só como participantes da Revolução Cultural.
Eles não são formados pelo ativismo da ideologia revolucionária
e são mais abertos a contatos internacionais. Eles são mais fortes
nas habilidades administrativas e
menos nas ideológicas.
Folha - Quais podem ser os efeitos da aprovação da lei anti-secessão contra Taiwan?
Spence - Acredito que será um
fator complicador. É parte de um
sistema de blefes, porque a situação sempre pode explodir, do lado de Taiwan ou da China.
Mas acho que vai reafirmar a
disposição do governo de ser mais
duro nessa área e vai colocar mais
pressão sobre países que apóiam a
independência de Taiwan de alguma forma.
Os países que pensam que a melhor opção é esperar, que acho
que é a opinião de muitos na Europa e nos Estados Unidos, creio
que não vão achar isso particularmente importante, de um jeito ou
de outro. Não é um ponto de crise.
Eu acho que o governo de Taiwan
está mais cauteloso. É mais um
gesto simbólico dizendo que eles
[os chineses] realmente estão falando sério [quando ameaçam invadir Taiwan caso a ilha declare
independência].
Folha - O sr. pensa que eles realmente estão?
Spence - Essa é a questão mais
difícil [risos]. É a maior área territorial que a China "perdeu" e não
conseguiu de volta desde que os
japoneses tomaram Taiwan, no
século 19. Desde então, a ilha tem
estado separada da China continental. A identidade de Taiwan é
um problema intrincado no direito e na política internacionais.
Nesse sentido, acho que eles querem muito Taiwan de volta.
Eles queriam a região nordeste
[Manchúria] de volta e conseguiram. Eles queriam a Mongólia,
mas perderam por causa da ex-União Soviética. Eles queriam o
Tibete e conseguiram, eles queriam Xinjiang e conseguiram.
Taiwan é uma área enorme que
era controlada pelo governo central e agora não o é. Há um gigantesco debate, e não é fácil dizer
qual é a política perfeita e por isso
muita gente afirma que o melhor
é esperar.
Folha - Como o sr.
descreveria a presença do Partido
Comunista na sociedade chinesa?
Spence - Não estou seguro se posso responder a isso. Eu acredito
que é visto como
algo em relação ao
qual se deve ter
cuidado. Se você é
um homem de negócios e se recusa
a entrar no partido, acredito que
poderá ter problemas consideráveis
e terá o acesso ao
poder ou a empréstimos bloqueados, alguns
tipos de permissão poderão ser
recusadas. Também teria reduzido o acesso a áreas
dominadas pelo
partido.
Se você pertence
ao partido, provavelmente não será
um apaixonado
leninista, socialista ou apaixonado defensor do
controle do Estado sobre os meios
de produção. É uma questão de
pragmatismo. Em muitos casos, é
uma questão de sobrevivência
empresarial e intelectual, já que
também pode ser útil às pessoas
nas universidades.
Folha - Há alguma ameaça visível
à manutenção do poder pelo PC?
Spence - A China tem um histórico padrão de fragmentação, que
normalmente vem de vários pequenos centros concorrentes de
poder, que ficam mais assertivos e
finalmente têm confrontação
com o Estado. Isso aconteceu
muito no passado.
Hoje vejo histórias de vilas rurais na China quase se revoltarem,
fecharem suas estradas com barricadas e até queimarem uma estação da polícia. Outras vezes,
consideram que a corrupção é tão
grande que pedem restituição de
impostos. Também há muitas
pessoas tentando iniciar ações
contra decisões do governo de tirá-las de suas casas. Tudo isso são
zonas potenciais de oposição.
O governo precisa ser muito habilidoso para dar atenção a todos
esses casos. Há várias lições do
passado, mas uma delas é que governos foram freqüentemente
derrubados por essas áreas locais
de poder que eles negligenciaram.
Uma coisa que era vista como pequena se tornava extremamente
perigosa, porque não se dava a devida atenção a ela.
Eu acredito que um dos maiores
riscos é uma burocracia partidária descuidada. A burocracia partidária precisa ser muito atenta e
bem informada sobre potenciais
problemas. O presidente Hu Jintao ordena respostas quando há
uma crise, mas não tenta antecipar em todo o país onde podem
ocorrer problemas.
Folha - O sr. viaja à China com freqüência?
Spence - Normalmente duas vezes por ano, para encontrar alguns amigos, ter conversas ou dar
palestras. Eu também vou a Taiwan e a Hong Kong. Eu adoro ir à
China. As mudanças são incríveis,
espantosas. Não sabemos ainda
quão profundas e permanentes
elas serão, quão forte esse país será. Acho que tem grande potencial, mas um enorme potencial
para problemas também.
Folha - Qual dos dois cenários o
sr. considera mais provável?
Spence - Estou ligeiramente otimista. Creio que há bom senso do
lado chinês e espero que haja habilidade do resto do mundo em
coabitar [com a China]. A China
está colocando pressão na demanda por recursos mundiais.
Todo o mundo aponta para isso.
Estão construindo uma dezena
de usinas nucleares, querem desenvolver sua Marinha, ter petróleo do Canadá, recursos da América Latina, como minério de ferro, petróleo e aço, do Irã, de Angola, da British Petroleum, da Yukos. Eles são grande "players" internacionais agora. E muito disso
é realizado com o dinheiro que
eles lucram nos Estados Unidos, o
que é irônico. É um dos paradoxos da economia mundial.
Folha - Que tipo de superpotência
a China será, caso se transforme em
uma?
Spence - Isso depende de você
acreditar que é
possível haver
uma superpotência benevolente.
Folha - É uma
contradição em
termos?
Spence - As pessoas estão preocupadas, na medida
em que a política
mundial está muito volátil. É possível ter apenas
uma superpotência? Ou quatro ou
cinco? Se superpotências são definidas como poder econômico no
futuro, poderemos ter uma superpotência na
América Latina,
uma superpotência norte-americana, uma no Sudeste Asiático em
torno da China, e
nordeste asiático,
com China, Japão
e Coréia, e a União
Européia.
Há possibilidades de cinco ou
seis áreas econômicas superintegradas. Talvez nós fiquemos livres
de superpotências individuais e
tenhamos mais conflitos entre regiões globais. Será um arranjo internacional diferente. Superpotências tendem a ser perigosas e
imprevisíveis. Eu não ligaria se
elas deixassem de existir.
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