São Paulo, domingo, 13 de março de 2005

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ÁSIA

Jonathan Spence, um dos maiores especialistas em história da China, diz que partido, em passo inédito, deixa ideologia de lado

"PC chinês se abre ao mundo por negócios"

CLÁUDIA TREVISAN
DE PEQUIM

O Partido Comunista da China passa por um processo inédito de internacionalização, não para levar a revolução socialista a todos os cantos do mundo, como previa Karl Marx, mas em busca de bons e lucrativos negócios.
A internacionalização é um dos principais elementos da mudança de identidade do partido, afirma Jonathan Spence, professor de História da China na Universidade Yale, nos EUA.
A mudança de identidade do Partido Comunista caminha para algo que não se sabe ainda o que é. Na opinião de Spence, é difícil definir hoje o que significa ser um "leal membro" do partido.
Uma das principais autoridades do mundo em história da China, Spence acredita que reformas políticas serão inevitáveis no país, mas observa que os chineses aprenderam com a experiência da ex-União Soviética que as mudanças têm de ser feitas de maneira lenta e segura.
"Com uma população imensa, uma elevada quantidade de migração interna e uma pobreza tão grande no campo, eles sabem que têm problemas sociais colossais, que provavelmente não serão bem servidos no momento com mudanças políticas", declarou Spence à Folha em entrevista por telefone, cujos principais trechos são publicados a seguir.

Folha - Qual a importância real do encontro do Congresso Nacional do Povo?
Jonathan Spence -
Pelo menos ele permite que alguns assuntos venham à tona e que temas controvertidos sejam discutidos. Apesar de ninguém votar contra, algumas vezes vemos real oposição. Outras vezes, você pode captar um pouco do que os delegados pensam, mesmo que eles não votem contra o governo. É interessante ver algumas das discussões.

Folha - De alguma maneira eles podem influenciar o que o governo central pensa e decide?
Spence -
Eu diria que um pouco. Eles têm alguma influência. Se há uma oposição realmente forte, ela definitivamente será importante. Do contrário, o governo espera ter um grande apoio da maioria desse grupo. Mas pode haver alguma exceção.

Folha - Qual é o grau de controle do Partido Comunista sobre o Congresso Nacional?
Spence -
Creio que é muito forte, porque há principalmente membros do partido no Congresso, mas há outros delegados, que representam outros interesses.
A maioria é de leais membros do partido. Mas não temos mais certeza do que isso significa. Você pode abertamente discordar da orientação do governo e ter opiniões bem diferentes [e ainda assim ser um leal comunista]. O ex-premiê Zhao Zyiang, que morreu há algumas semanas, tinha um enorme grau de discordância com o governo central, mas várias pessoas no Congresso devem se identificar muito com ele, apesar de não dizerem isso claramente.
[Zhao Zyiang perdeu o cargo de primeiro-ministro em 1989, por apoiar os protestos pró-democracia de estudantes na praça Tiananmen. Ficou em prisão domiciliar por 15 anos e morreu em janeiro, aos 85 anos].

Folha - O sr. crê que o PC está sofrendo uma crise de identidade?
Spence -
O Partido Comunista da China tem muitos altos e baixos em termos de identidade. Os atuais líderes estão tentando impedir que qualquer problema grave ocorra na economia ou no campo, e não estou seguro de que eles tenham muito de uma identidade marxista-leninista nem se eles diriam que a têm.
Acho que existe a memória de um Estado e uma economia centralizados. Eles estão tentando superar alguns dos problemas econômicos e construir um enorme novo mercado, com parceiros comerciais em todo o mundo.
O partido está se internacionalizando, o que é realmente interessante e novo. Mao [Tsé-tung] nunca fez isso e Deng [Xiaoping] fez, mas nada perto da escala atual. Os chineses estão fazendo negócios em todos os lugares, Austrália, Canadá, Venezuela.

Folha - Brasil.
Spence -
Sim, Brasil, Caribe, Sudeste Asiático, realizam discussões com a Índia sobre transferência de tecnologia. É um momento muito excitante. Provavelmente o próprio presidente Hu Jintao não tenha senso muito forte de identidade. Creio que ele teria dificuldade em responder esse tipo de pergunta.

Folha - Mas ao mesmo tempo o partido começou uma enorme campanha de doutrinação, para estudo das teorias marxistas-leninistas, de Mao Tsé-tung e de Deng Xiaoping. Isso não é um indício de que eles estão tentando reforçar uma identidade comunista nesse período de rápidas transformações?
Spence -
Não creio que isso seja muito efetivo. As pessoas que vão aos cursos fazem isso como uma obrigação. Vão porque são membros do partido, mas não acredito que seja ideologicamente convincente. Não é como na Revolução Cultural [1966-1976], quando houve sérias campanhas de estudos e doutrinação na base do partido. As teorias de Deng Xiaoping e de Jiang Zemin são entidades tão vagas que realmente não há força ideológica nelas. Não é como ser um leninista rigoroso.

Folha - Quando pergunto a jovens chineses filiados ao partido sobre os motivos que os levaram a isso, muitos respondem que é importante pertencer ao partido para ter sucesso profissional.
Spence -
Acho que eles estão respondendo a verdade. Por que ajuda a conseguir bons empregos? Porque dá acesso à burocracia e ao sistema bancário, por meio de contatos do partido. Também dá acesso importante a serviços médicos. Aparentemente, membros do partido de todos os níveis têm direito a boa assistência médica.

Folha - Cada vez menos questões ideológicas e cada vez mais questões pragmáticas têm peso na decisão de se filiar ao partido?
Spence -
Parece que sim.

Folha - Com a crescente internacionalização, é possível ao partido manter o sistema político inalterado e reformar só a economia?
Spence -
Vai ficar um pouco mais difícil a cada ano. A questão é saber qual é o ponto de ruptura. Eles têm a vantagem de poder observar o que ocorreu na antiga União Soviética e o que acontece hoje na Rússia. É um modelo interessante sobre o que é seguro tentar e o que deve ser tratado com extremo cuidado, em termos de mudanças econômicas e políticas.
Creio que a lição que eles aprenderam é que, quanto mais gradual for a mudança política, mais seguros eles estarão no longo prazo. A mudança é provavelmente inevitável, e quanto mais lentamente eles a atingirem, melhor.
Com uma população imensa, uma elevada quantidade de migração interna e uma pobreza tão grande no campo, eles sabem que têm problemas sociais colossais, que provavelmente não serão bem servidos no momento com mudanças políticas.
Você quer quer todos os migrantes internos votem, por exemplo, mas não tem a menor idéia do que isso significaria. Há provavelmente 800 milhões de pessoas se movendo pela China em busca de emprego e trabalhando nas grandes cidades. Vai dar direito de voto a todas elas? Se for, o que vai ocorrer com a liderança política? Há 60 milhões de pessoas no partido, cujos votos seriam superados pelos dos camponeses e migrantes. Eles têm de ser extremamente cuidadosos, mesmo que estejam interessados em reformas democráticas.

Folha - E eles estão?
Spence -
É difícil dizer. Eles estão conscientes de que certas mudanças são desejadas pela população. O governo também observa Hong Kong com grande interesse. Acredito que Hong Kong e Taiwan, além de serem modelos econômicos, são experiências políticas que eles estudam.

Folha - Que tipo de diferenças o sr. vê entre a atual geração de líderes, de Hu Jintao, e as anteriores?
Spence -
Deng Xiaoping [1904-1997] ainda tinha contatos com a verdadeira geração revolucionária. Ele lutou na revolução. A geração de Jiang Zemin, 78, entrou no partido na guerra civil, depois da invasão japonesa, e eles não passaram pelos primeiros estágios da revolução. A geração de Hu Jintao e Wen Jiabao [ambos com 62 anos] é formada por pessoas que não tiveram nenhuma experiência na revolução como ativistas, mas só como participantes da Revolução Cultural.
Eles não são formados pelo ativismo da ideologia revolucionária e são mais abertos a contatos internacionais. Eles são mais fortes nas habilidades administrativas e menos nas ideológicas.

Folha - Quais podem ser os efeitos da aprovação da lei anti-secessão contra Taiwan?
Spence -
Acredito que será um fator complicador. É parte de um sistema de blefes, porque a situação sempre pode explodir, do lado de Taiwan ou da China.
Mas acho que vai reafirmar a disposição do governo de ser mais duro nessa área e vai colocar mais pressão sobre países que apóiam a independência de Taiwan de alguma forma.
Os países que pensam que a melhor opção é esperar, que acho que é a opinião de muitos na Europa e nos Estados Unidos, creio que não vão achar isso particularmente importante, de um jeito ou de outro. Não é um ponto de crise. Eu acho que o governo de Taiwan está mais cauteloso. É mais um gesto simbólico dizendo que eles [os chineses] realmente estão falando sério [quando ameaçam invadir Taiwan caso a ilha declare independência].

Folha - O sr. pensa que eles realmente estão?
Spence -
Essa é a questão mais difícil [risos]. É a maior área territorial que a China "perdeu" e não conseguiu de volta desde que os japoneses tomaram Taiwan, no século 19. Desde então, a ilha tem estado separada da China continental. A identidade de Taiwan é um problema intrincado no direito e na política internacionais. Nesse sentido, acho que eles querem muito Taiwan de volta.
Eles queriam a região nordeste [Manchúria] de volta e conseguiram. Eles queriam a Mongólia, mas perderam por causa da ex-União Soviética. Eles queriam o Tibete e conseguiram, eles queriam Xinjiang e conseguiram. Taiwan é uma área enorme que era controlada pelo governo central e agora não o é. Há um gigantesco debate, e não é fácil dizer qual é a política perfeita e por isso muita gente afirma que o melhor é esperar.

Folha - Como o sr. descreveria a presença do Partido Comunista na sociedade chinesa?
Spence -
Não estou seguro se posso responder a isso. Eu acredito que é visto como algo em relação ao qual se deve ter cuidado. Se você é um homem de negócios e se recusa a entrar no partido, acredito que poderá ter problemas consideráveis e terá o acesso ao poder ou a empréstimos bloqueados, alguns tipos de permissão poderão ser recusadas. Também teria reduzido o acesso a áreas dominadas pelo partido.
Se você pertence ao partido, provavelmente não será um apaixonado leninista, socialista ou apaixonado defensor do controle do Estado sobre os meios de produção. É uma questão de pragmatismo. Em muitos casos, é uma questão de sobrevivência empresarial e intelectual, já que também pode ser útil às pessoas nas universidades.

Folha - Há alguma ameaça visível à manutenção do poder pelo PC?
Spence -
A China tem um histórico padrão de fragmentação, que normalmente vem de vários pequenos centros concorrentes de poder, que ficam mais assertivos e finalmente têm confrontação com o Estado. Isso aconteceu muito no passado.
Hoje vejo histórias de vilas rurais na China quase se revoltarem, fecharem suas estradas com barricadas e até queimarem uma estação da polícia. Outras vezes, consideram que a corrupção é tão grande que pedem restituição de impostos. Também há muitas pessoas tentando iniciar ações contra decisões do governo de tirá-las de suas casas. Tudo isso são zonas potenciais de oposição.
O governo precisa ser muito habilidoso para dar atenção a todos esses casos. Há várias lições do passado, mas uma delas é que governos foram freqüentemente derrubados por essas áreas locais de poder que eles negligenciaram. Uma coisa que era vista como pequena se tornava extremamente perigosa, porque não se dava a devida atenção a ela.
Eu acredito que um dos maiores riscos é uma burocracia partidária descuidada. A burocracia partidária precisa ser muito atenta e bem informada sobre potenciais problemas. O presidente Hu Jintao ordena respostas quando há uma crise, mas não tenta antecipar em todo o país onde podem ocorrer problemas.

Folha - O sr. viaja à China com freqüência?
Spence -
Normalmente duas vezes por ano, para encontrar alguns amigos, ter conversas ou dar palestras. Eu também vou a Taiwan e a Hong Kong. Eu adoro ir à China. As mudanças são incríveis, espantosas. Não sabemos ainda quão profundas e permanentes elas serão, quão forte esse país será. Acho que tem grande potencial, mas um enorme potencial para problemas também.

Folha - Qual dos dois cenários o sr. considera mais provável?
Spence -
Estou ligeiramente otimista. Creio que há bom senso do lado chinês e espero que haja habilidade do resto do mundo em coabitar [com a China]. A China está colocando pressão na demanda por recursos mundiais. Todo o mundo aponta para isso.
Estão construindo uma dezena de usinas nucleares, querem desenvolver sua Marinha, ter petróleo do Canadá, recursos da América Latina, como minério de ferro, petróleo e aço, do Irã, de Angola, da British Petroleum, da Yukos. Eles são grande "players" internacionais agora. E muito disso é realizado com o dinheiro que eles lucram nos Estados Unidos, o que é irônico. É um dos paradoxos da economia mundial.

Folha - Que tipo de superpotência a China será, caso se transforme em uma?
Spence -
Isso depende de você acreditar que é possível haver uma superpotência benevolente.

Folha - É uma contradição em termos?
Spence -
As pessoas estão preocupadas, na medida em que a política mundial está muito volátil. É possível ter apenas uma superpotência? Ou quatro ou cinco? Se superpotências são definidas como poder econômico no futuro, poderemos ter uma superpotência na América Latina, uma superpotência norte-americana, uma no Sudeste Asiático em torno da China, e nordeste asiático, com China, Japão e Coréia, e a União Européia.
Há possibilidades de cinco ou seis áreas econômicas superintegradas. Talvez nós fiquemos livres de superpotências individuais e tenhamos mais conflitos entre regiões globais. Será um arranjo internacional diferente. Superpotências tendem a ser perigosas e imprevisíveis. Eu não ligaria se elas deixassem de existir.


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