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São Paulo, domingo, 13 de abril de 2003

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ARTIGO

A náusea e as bombas que mais sabem

EDUARDO GALEANO
DA AGÊNCIA ENVOLVERDE

Os invasores procuram armas de destruição em massa. Não acharam mais que armas de museu. Mas são armas de construção maciça os mísseis que eles disparam?

As bombas inteligentes -que tão burras parecem- são as que mais sabem. Elas revelam a verdade da invasão. Enquanto Rumsfeld dizia: "Estes são bombardeios humanitários", as bombas destripavam crianças e arrasavam mercados de rua.
O país que mais armas e mais mentiras fabrica no mundo despreza a dor dos demais. "Não contamos os mortos", respondeu o general Tommy Franks, quando alguém lhe perguntou sobre os "danos colaterais", como são chamados os civis que voam em pedaços. Babilônia, a rameira do Antigo Testamento, merece esse castigo. Por seus muitos pecados e por ter muito petróleo.
Os invasores procuram as armas de destruição em massa que venderam -quando o inimigo era amigo- ao ex-ditador do Iraque, e que foi o principal pretexto para a invasão. Até agora, que se saiba, não encontraram mais que armas de museu.
Mas são armas de construção maciça os mísseis gigantes que eles disparam? Os invasores têm à vista as armas tóxicas e as armas proibidas: as estão usando. O urânio empobrecido envenena a terra e o ar, e os estilhaços de aço das bombas de fragmentação matam ou mutilam em um raio que vai muito além de seus alvos.
Em 1983, quando os fuzileiros navais ocuparam a ilha de Granada, a Assembléia das Nações Unidas condenou, por enorme maioria, a invasão. O então presidente Ronald Reagan, respeitoso, disse: "Isto não perturbou em nada meu café da manhã".
Seis anos depois, foi a vez do Panamá. Os libertadores bombardearam os bairros mais pobres, fulminaram milhares de civis, reduzidos a 560 nos números oficiais, e elegeram o novo presidente do país na base militar de Fort Clayton. O Conselho de Segurança da ONU, quase por unanimidade, se pronunciou contra. Os Estados Unidos vetaram a resolução, e se puseram a trabalhar em suas invasões seguintes.
As Nações Unidas aplaudiram essas invasões seguintes, ou vaiaram ou olharam para o outro lado, e foram as Nações Unidas que decretaram o embargo internacional contra o Iraque, que assassinou muito mais gente do que a guerra de Bush pai: mais de meio milhão de crianças mortas por falta de remédios e alimentos.
Agora -surpresa- as Nações Unidas se negam a acompanhar a nova carnificina de Bush filho. Para evitar que nas próximas guerras se repita esse episódio de má conduta, temo, não haverá outra saída do que contar os votos do Conselho de Segurança no Estado da Flórida.
Não havia aparecido os primeiros mísseis nos céus do Iraque quando já se havia cozinhado o governo de ocupação, democrático governo integralmente formado por militares dos EUA, e já se fazia a divisão dos despojos dos vencidos. Ainda se continua disputando o botim, que não é pouco: as fabulosas jazidas de ouro negro. As empresas agraciadas comemoram suas conquistas nos painéis da Bolsa de Nova York. Ali está a melhor notícia da guerra. Os índices variam ao som da carnificina humana.
E que parte caberá a mim?, perguntam alguns membros da coalizão. Mas que coalizão? Os cúmplices dessa missão libertadora, que são 40, como no conto de Ali Babá, integram um coro em que abundam os violadores dos direitos humanos e as ditaduras.
E de onde se lançou a cruzada? Onde estão as bases militares dos EUA? Basta lançar uma olhada no mapa: essas monarquias petrolíferas, inventadas pelas potências coloniais, se parecem tanto com a democracia quanto Bush se parece com Gandhi.
É uma aliança de dois. Um que acredita no império de hoje, e outro que encolhe. O império de ontem. Os demais servem o café e esperam a gorjeta.
Essa aliança de dois pela liberdade do petróleo, que o Iraque nacionalizou, nada tem de novo.
Em 1953, quando o Irã anunciou a nacionalização do petróleo, Washington e Londres responderam organizando, juntos, um golpe de Estado. O mundo livre ameaçado fez correr sangue, e o xá Reza Pahlevi, estrela das revistas românticas, se converteu no carcereiro do Irã durante um quarto de século.
Em 1965, quando a Indonésia nacionalizou o petróleo, Washington e Londres também responderam organizando, juntos, um golpe de Estado. O mundo livre ameaçado instalou a ditadura do general Suharto sobre um montanha de mortos. Meio milhão, segundo cálculos mais conservadores. De cada árvore pendia um enforcado. Todos comunistas, explicava Suharto.
Ele seguiu matando. Ficou com o "tique". Em 1975, poucas horas depois de uma visita do presidente Gerald Ford, invadiu Timor Leste e assassinou a terça parte da população. Dez resoluções das Nações Unidas obrigavam Suharto a se retirar de Timor Leste "sem demora". Ele, sempre surdo. A ninguém ocorreu bombardeá-lo por isso, nem as Nações Unidas decretaram algum embargo universal contra ele.
No ano passado, Ana Luisa Valdés esteve em Jenin, um dos campos de refugiados palestinos bombardeados por Israel. Ela viu um imenso buraco cheio de mortos sob os escombros. O buraco de Jenin tinha o mesmo tamanho que o das torres gêmeas de Nova York. Mas quantos o viam, além dos sobreviventes que revolviam os escombros procurando pelos seus? As tragédias comovem o mundo na proporção direta da publicidade que têm.
Existem jornalistas honestos, que contam a guerra tal como a vêem. Alguns pagaram com a vida. Mas existem jornalistas disfarçados de soldados, que mais parecem soldados disfarçados de jornalistas, que oferecem versões adaptadas ao paladar das grandes redes de desinformação globalizada. Matanças nos mercados cheios de gente? Foram bombas iraquianas. Civis mortos? Escudos humanos que Saddam usa. Cidades sitiadas, sem água nem comida? A invasão é uma missão humanitária. Resistiram as cidades, e muito mais do que o previsto? Na televisão, se rendiam todos os dias. Os invasores são heróis. Os invadidos que os enfrentam são instrumentos da tirania: os acusam de se defenderem.
A maioria dos americanos está convencida de que Saddam Hussein derrubou as torres de Nova York. Também acredita que seu presidente faz o que faz pelo bem da humanidade e por inspiração divina. Os meios de comunicação em massa vendem certezas, e as certezas não precisam de provas. Mas o mundo está farto de uma vez mais ser obrigado a engolir, a cada dia, os sapos desse cardápio.
O país dedicado a bombardear os demais países, que vem infligindo ao planeta uma incontável quantidade de 11 de setembro, proclamou a terceira guerra mundial infinita. O presidente, que não foi ao Vietnã graças ao papai e que só conhece as guerras de Hollywood, manda matar e manda morrer. Não em nosso nome, dizem os familiares das vítimas das torres. Não em nosso nome, clama a humanidade. Não em meu nome, clama Deus.


Eduardo Galeano, 62, escritor e jornalista uruguaio, é autor de "As Veias Abertas da América Latina"


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