|
Texto Anterior | Índice
COMENTÁRIO
A globalização do ressentimento
MARILENE FELINTO
ARTICULISTA DA FOLHA
Hora de passar o pires, de sair
por aí exigindo de cada padeiro
português que ele nos dê o pão
grátis, porque ele tem para conosco uma dívida histórica de exploração, de escravidão.
Se é verdade que as nações em
desenvolvimento pretendem
transformar "reparação" e "indenização" nas palavras-chaves do
fórum da ONU sobre racismo, a
ser realizado este ano na África do
Sul, o espetáculo será mesmo imperdível.
No caso brasileiro, a imagem
mental que o senso comum vai logo criar é essa de acertar as contas
com a ex-Coroa, de trazer de volta
o nosso ouro. De fato, parece que
os alvos principais das exigências
de compensação são a Europa, os
Estados Unidos e o Japão -o conhecido embate entre os hemisférios Norte e Sul, entre metrópoles
e ex-colônias.
Os povos do Sul -índios, negros, indianos, aborígenes australianos e seus descendentes- devem pensar assim: se os judeus
podem, por que nós não podemos? Pedem a mesma indenização, moral e financeira, que os judeus já conseguiram de seus algozes europeus, a Alemanha no início da fila.
Nada disso é novidade. Já não é
de hoje que o europeu, outrora
herói da conquista das Américas,
tornou-se o seu demônio; e que as
vítimas, que não podem ser trazidas de volta à vida, são canonizadas.
O debate sobre a necessidade de
reparação pelos erros do passado,
pela injustiça da escravidão -segundo Boris Fausto, estima-se
que entraram só pelos portos brasileiros 4 milhões de escravos africanos entre 1550 e 1855-, pela segregação ditada em lei, como
aconteceu nos Estados Unidos até
os anos 60 ou na África do Sul do
apartheid, não é assunto novo.
A novidade agora parece ser a
globalização da exigência, sua
apresentação em bloco num congresso da Organização das Nações Unidas.
Considerando que os modelos
de cobrança judeu e "afro-americano" não se aplicam a contextos
étnicos mais complexos como o
brasileiro, ou a fatos históricos
perdidos no tempo como a matança dos índios sul-americanos
pelos espanhóis (fatos não tão
frescos na memória como a Segunda Guerra), o que se vai assistir é, de certo modo, à globalização do ressentimento.
Li outro dia, em algum lugar, essa idéia de que a globalização -as
áreas de livre comércio, as
"uniões européias" -, ao favorecer o deslocamento desordenado
de mercadorias e produtos, só
serve para espalhar vírus mundo
afora, de um continente para outro, de um país para outro, da vaca louca à febre aftosa. Os ressentimentos estariam passando pela
mesma espécie de contaminação.
É claro que o fórum internacional sobre racismo não vai chegar a
esse extremismo de identificar
quem é quem no acerto de contas:
quem paga, quem recebe. No Brasil, a tarefa seria inútil: como distinguir, aqui, quem é branco puro
de quem é negro puro? E a imensa
maioria de miscigenados? E os índios? Também teriam direito à indenização? Não é todo mundo
aqui, em parte, português?
É claro que o fórum não vai cair
nesse debate estéril. Se caísse, teria ainda de definir e classificar cada crime de escravidão ou de racismo de acordo com cada cenário específico.
Há quem lamente não ter existido no Brasil uma segregação mais
"hard core" ("barra pesada"), à la
americana, à la apartheid -assim
a discriminação se daria às claras,
sem máscaras, e os negros preservariam sua cultura, sua raça, e se
manteriam unidos, solidários,
sem se dispersarem em gradações
de mulatos ou morenos.
Os adeptos dessa teoria consideram que o racismo brasileiro,
"assimilacionista" -fundado na
miscigenação, afinal aqui, como
observa Darcy Ribeiro, a mestiçagem nunca foi punida, mas louvada, as uniões inter-raciais nunca
foram tidas como crime nem pecado-, disfarça e mascara a discriminação.
Os adeptos dessa teoria certamente endossam a globalização
do ressentimento e estarão dispostos a adotar qualquer modelo
de reparação (do indenizatório
judeu ao "afro-americano" da
ação afirmativa, das cotas), contanto que funcione.
No caso brasileiro, essa postura
é um equívoco ridículo. É nela,
aliás, que se baseia a tendência
majoritária do chamado "movimento negro brasileiro", um
agrupamento de lúmpen-radicais
que não consegue convencer ou
comover nem mesmo os negros,
o alvo de sua doutrinação.
O apelo da miscigenação é mais
forte e muda as coisas para melhor -bom mesmo é ser brasileiro e miscigenado.
Quaisquer que sejam as conclusões tiradas do fórum da ONU sobre racismo, a mensagem principal estará dada: as periferias guardam séculos de raiva acumulada,
dos subúrbios de Washington,
nos Estados Unidos, às favelas
brasileiras -e é na periferia que
estão os negros, sinônimos de pobres.
Um negro ou um mulato nascidos no Brasil, que trabalharam e
trabalham de sol a sol na labuta
sem trégua de construir um país,
sempre valeram menos do que
um estrangeiro branco que tenha
se instalado aqui, comprado terras, virado colarinho branco que a
tudo e a todos compra do alto de
seu status social.
Herança da Lei de Terras, criada
duas semanas após o fim da escravidão, para assegurar que as terras do governo não fossem mais
doadas, mas sim compradas, protegendo-as dos imigrantes estrangeiros que viriam, então, "substituir" a mão-de-obra escrava.
Aqui a história não está na cor
da pele: está na propriedade. É
preciso distribuir terras e renda
-é preciso tomar a terra e a riqueza a que os negros, mulatos,
índios e pobres têm direito histórico. É preciso educar, aplicar injeções de ciência, de conhecimento, de esclarecimento -dos livros
escolares à cabeça dos donos da
mídia, é preciso repetir sem parar
o que os contadores do genoma
humano já demonstraram: que
apenas uma vírgula genética diferencia um homem branco de um
homem negro; de resto, mais semelhantes entre si do que dois
brancos entre eles.
O Brasil só não é uma democracia racial porque não é uma democracia social. Como dizia
Darcy Ribeiro, "a luta mais árdua
do negro africano e de seus descendentes brasileiros foi, e ainda
é, a conquista de um lugar e de um
papel de participante legítimo na
sociedade nacional. As atuais
classes dominantes brasileiras,
feitas de filhos e netos dos antigos
senhores de escravos, guardam,
diante do negro, a mesma atitude
de desprezo vil. Todos eles são tidos consensualmente como culpados de suas próprias desgraças,
explicadas como características
da raça e não como resultado da
escravidão e da opressão. A nação
brasileira comandada por gente
dessa mentalidade nunca fez nada
pela massa negra que a construiu."
Texto Anterior: Brasil defende compensação não-financeira Índice
|