São Paulo, sábado, 13 de outubro de 2007

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análise

Prêmio é golpe duplo nos céticos

MARCELO LEITE
COLUNISTA DA FOLHA

O Nobel da Paz para o IPCC e/ou Al Gore era dado como favas contadas por muitos. Não deixa de ser surpresa, contudo, que tenha saído para ambos. Claramente se trata de uma mensagem ao mesmo tempo política e científica.
Muita gente torce o nariz diante dessa mescla. Ciência não teria nada a ver com política, é comum ouvir. O filme que valeu um Oscar neste ano a Gore e agora o Nobel, "Uma Verdade Inconveniente", visto desse ângulo, seria o melhor exemplo de impertinência.
Nos Estados Unidos, a Associação Nacional de Professores de Ciência recusou 70 mil cópias do DVD para uso em sala de aula. No Reino Unido, um pai de aluno levou o caso à Justiça por considerar que se tratava de "material político". Um magistrado negou o banimento do filme das escolas, contanto que professores apresentem as visões de Gore de modo crítico.
Há pontos discutíveis no trabalho, com efeito, e Gore precisa responder uma a uma as objeções. Assim funciona o campo científico no qual busca apoio para sua cruzada. Ele não precisava ter incluído as duvidosas neves do monte Kilimanjaro, por exemplo, até porque não são as únicas mostradas no filme.
Mas é pouco para negar que, no geral, a obra passa bem pelo escrutínio especializado: nove afirmações duvidosas, como contou o juiz, em 96 minutos de projeção, até que não fazem feio.
O Comitê Norueguês do Nobel lavrou um autêntico passa-moleque nos críticos de picuinhas. Calou a boca, ainda, daqueles que -como o estatístico dinamarquês Bjorn Lomborg e o romancista americano Michael Crichton- se especializaram em inventariar exemplos do que consideram alarmismo climático de Gore e sua turma (sem conseguir, no entanto, convencer a maioria de que o balanço das evidências científicas favoreça a inação).
Dando o prêmio também para o IPCC, o comitê desfere o segundo direto em seqüência nos chamados "céticos".
Existe um consenso científico, sim, produzido por centenas de pesquisadores de dezenas de países com base em milhares de conjuntos de dados compilados nos últimos 20 anos.
Isso não significa que o trabalho do IPCC não seja também ele político.
Ao lançar a súmula científica de seu Quarto Relatório de Avaliação, em fevereiro, não precisava ter qualificado como "inequívoco" o aquecimento do sistema clima -mas o fez. É um uso ético e legítimo de retórica, pois lastreado não só em convicções e objeções, mas em toneladas de observações.
O Nobel para Gore e o IPCC quer dizer que seus adversários não têm nada de equivalente a mostrar. Nem mesmo no cinema.


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