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HAITI EM RUÍNAS
Zilda Arns, 75, morre em missão humanitária
Criadora da Pastoral na Criança nos anos 80, pediatra estava no país para levar a religiosos a metodologia da instituição
Em nota, dom Paulo Evaristo Arns diz: "Não é hora de perder a esperança'; médica será enterrada em Curitiba, ao lado de marido e 2 filhos
LAURA CAPRIGLIONE
DA REPORTAGEM LOCAL
A médica sanitarista e pediatra Zilda Arns Neumann, 75,
morreu anteontem no terremoto do Haiti, onde estava em
missão humanitária. Pretendia
levar a religiosos daquele país a
metodologia da Pastoral da
Criança, hoje presente em 20
países. No Brasil, a organização
formada por 260 mil voluntários acompanha mais de 1,9 milhão de gestantes e crianças
menores de seis anos, além de
1,4 milhão de famílias pobres,
em 4.063 municípios.
Segundo o ministro Celso
Amorim (Relações Exteriores),
a mulher do embaixador brasileiro no Haiti, Igor Kipman,
Roseana Kipman, foi quem encontrou o corpo de Zilda e de
um tenente que a acompanhava. Ela estaria caminhando pela
rua quando foi atingida por
destroços de um prédio.
Já Nelson Arns Neumann,
um de seus cinco filhos, também médico e coordenador nacional adjunto da Pastoral da
Criança, disse em Curitiba ter
sido informado pela Presidência da República de que, quando as paredes da igreja em que
sua mãe estava no Haiti desabaram, a médica discursava à
comunidade religiosa haitiana.
Coube ao chefe de gabinete
de Lula, Gilberto Carvalho, informar sobre a morte aos familiares, entre eles seu irmão, o
arcebispo emérito de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns, e o
sobrinho, senador Flávio Arns,
que embarcou ontem com o
ministro da Defesa, Nelson Jobim, para Porto Príncipe (leia
texto nesta página).
"Acabo de ouvir emocionado
a notícia de que minha caríssima irmã Zilda Arns Neumann
sofreu com o bom povo do Haiti
o efeito trágico do terremoto.
Que nosso Deus, em sua misericórdia, acolha no céu aqueles
que na terra lutaram pelas
crianças e os desamparados.
Não é hora de perder a esperança", escreveu dom Paulo em nota divulgada no início da tarde.
Era a segunda vez que Zilda
visitava o Haiti. Deveria voltar
ao Brasil no sábado. A médica
será enterrada em Curitiba,
junto ao corpo de seu marido e
dois de seus filhos (um que nasceu morto e uma filha morta
em acidente de carro).
Ainda não há previsão de
quando será o velório, que será
realizado na sede da Pastoral da
Criança. Ontem foi realizada
missa na catedral da Sé, em São
Paulo, em homenagem a Zilda e
às demais vítimas do Haiti.
Filha de uma família de 13 irmãos, dos quais cinco dedicados à vida religiosa, Zilda Arns
ficou viúva aos 43 anos do administrador Aloysio Bruno
Neumann, que morreu aos 46.
Cinco anos depois, em 1983,
iniciou sua obra, ao fundar a
Pastoral da Criança, em uma
experiência-piloto na cidade de
Florestópolis, no Paraná.
Pouco tempo antes, tinha recebido do irmão, dom Paulo,
então cardeal arcebispo de São
Paulo, o desafio de ensinar as
mães de comunidades carentes
a usar o soro caseiro para combater o que era, então, o maior
causador da mortalidade infantil -a desidratação causada por
diarreias e vômitos.
Hoje, a mistura de duas medidas rasas de açúcar com uma
rasa de sal, em um litro de água
limpa, o famoso soro caseiro,
parece daqueles remédios que
sempre existiram. Mas até os
anos 1980, usavam-se remédios
industrializados, comercializados sob patentes e caros.
Dom Paulo havia recebido de
James Grant, então diretor-executivo do Unicef, o pedido
de que envolvesse a Igreja Católica na difusão do soro, recém-formulado. "Aquilo era
como um ovo de Colombo. Podia salvar milhões de vidas, era
barato, simples de fazer", lembra o professor de pediatria da
Universidade Federal de São
Paulo, Fabio Ancona Lopes.
A médica Zilda Arns, à época
com 48 anos, 27 de consultório,
especialização em pediatria,
administração de programas de
saúde materno-infantil e saúde
pública, ficou encarregada de
formatar o programa da nova
pastoral. Em 2004, a CNBB
deu-lhe outra missão: organizar a Pastoral da Pessoa Idosa.
"Ela fez muito mais do que isso", lembra a deputada federal
Luiza Erundina (PSB-SP): "Em
vez de simplesmente administrar o soro, ela criou uma rede
de agentes comunitários da
saúde, a esmagadora maioria
dos quais mulheres pobres, que
conheciam a forma de multiplicar os conhecimentos que acabavam de adquirir".
"Logo se viu que o modelo da
pastoral era um sucesso. O Programa de Saúde da Família,
com médicos, enfermeiros e
agentes comunitários, tem raízes claras na intervenção da
pastoral", diz a deputada.
Zilda Arns, olhos azuis, um
forte sotaque alemão, xerox do
rosto do irmão dom Paulo, batom forte (ela dizia que tinha
aprendido a se maquiar apenas
aos 60 anos), aparecia pesando
crianças em balanças improvisadas, ensinando a formulação
do soro caseiro, distribuindo
uma mistura nutritiva, feita de
alimentos baratos (a "multimistura da pastoral"), feita de
casca de ovo, semente de abóbora, arroz, milho ou fubá, folha de mandioca -antianemia
e desnutrição, ela garantia.
A taxa de mortalidade infantil entre as comunidades atendidas pelos voluntários de Zilda
Arns era de 13 por mil nascidos
vivos, contra a média nacional,
de 34,6 por mil.
Em 2001, o então ministro da
Saúde, José Serra, apresentou a
primeira candidatura oficial
brasileira ao Prêmio Nobel da
Paz. Levou o nome de Zilda.
"Engana-se quem pense que
a doutora Zilda, com sua fala
mansa e serena, era uma mulher frágil. Ao contrário, era
enérgica, incansável, organizada, determinada", lembrou ontem dom Pedro Luiz Stringhini, coordenador das pastorais
sociais da CNBB.
A ação da médica Zilda Arns
na Pastoral da Criança enraizava-se no rigor da fé e da moralidade cristã, o que lhe custou a
antipatia do movimento feminista brasileiro. A ênfase de seu
trabalho era a família.
A professora Maria José Rosado, coordenadora do grupo
pró-descriminalização do
aborto Católicas pelo Direito
de Decidir, se lembrou ontem
das décadas de divergências
que ela e Zilda Arns acumularam em relação à defesa das
mulheres: "A doutora Zilda
opunha-se ao aborto, à união
civil de pessoas de mesmo sexo,
às pesquisas com células-tronco embrionárias. Até mesmo os
anticoncepcionais e os preservativos não tinham lugar no
mundo da fundadora da Pastoral da Criança".
Colaboraram a Sucursal de Brasília e a
Agência Folha
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