São Paulo, quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

HAITI EM RUÍNAS

Zilda Arns, 75, morre em missão humanitária

Criadora da Pastoral na Criança nos anos 80, pediatra estava no país para levar a religiosos a metodologia da instituição

Em nota, dom Paulo Evaristo Arns diz: "Não é hora de perder a esperança'; médica será enterrada em Curitiba, ao lado de marido e 2 filhos


LAURA CAPRIGLIONE
DA REPORTAGEM LOCAL

A médica sanitarista e pediatra Zilda Arns Neumann, 75, morreu anteontem no terremoto do Haiti, onde estava em missão humanitária. Pretendia levar a religiosos daquele país a metodologia da Pastoral da Criança, hoje presente em 20 países. No Brasil, a organização formada por 260 mil voluntários acompanha mais de 1,9 milhão de gestantes e crianças menores de seis anos, além de 1,4 milhão de famílias pobres, em 4.063 municípios.
Segundo o ministro Celso Amorim (Relações Exteriores), a mulher do embaixador brasileiro no Haiti, Igor Kipman, Roseana Kipman, foi quem encontrou o corpo de Zilda e de um tenente que a acompanhava. Ela estaria caminhando pela rua quando foi atingida por destroços de um prédio.
Já Nelson Arns Neumann, um de seus cinco filhos, também médico e coordenador nacional adjunto da Pastoral da Criança, disse em Curitiba ter sido informado pela Presidência da República de que, quando as paredes da igreja em que sua mãe estava no Haiti desabaram, a médica discursava à comunidade religiosa haitiana.
Coube ao chefe de gabinete de Lula, Gilberto Carvalho, informar sobre a morte aos familiares, entre eles seu irmão, o arcebispo emérito de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns, e o sobrinho, senador Flávio Arns, que embarcou ontem com o ministro da Defesa, Nelson Jobim, para Porto Príncipe (leia texto nesta página).
"Acabo de ouvir emocionado a notícia de que minha caríssima irmã Zilda Arns Neumann sofreu com o bom povo do Haiti o efeito trágico do terremoto. Que nosso Deus, em sua misericórdia, acolha no céu aqueles que na terra lutaram pelas crianças e os desamparados. Não é hora de perder a esperança", escreveu dom Paulo em nota divulgada no início da tarde.
Era a segunda vez que Zilda visitava o Haiti. Deveria voltar ao Brasil no sábado. A médica será enterrada em Curitiba, junto ao corpo de seu marido e dois de seus filhos (um que nasceu morto e uma filha morta em acidente de carro).
Ainda não há previsão de quando será o velório, que será realizado na sede da Pastoral da Criança. Ontem foi realizada missa na catedral da Sé, em São Paulo, em homenagem a Zilda e às demais vítimas do Haiti.
Filha de uma família de 13 irmãos, dos quais cinco dedicados à vida religiosa, Zilda Arns ficou viúva aos 43 anos do administrador Aloysio Bruno Neumann, que morreu aos 46.
Cinco anos depois, em 1983, iniciou sua obra, ao fundar a Pastoral da Criança, em uma experiência-piloto na cidade de Florestópolis, no Paraná.
Pouco tempo antes, tinha recebido do irmão, dom Paulo, então cardeal arcebispo de São Paulo, o desafio de ensinar as mães de comunidades carentes a usar o soro caseiro para combater o que era, então, o maior causador da mortalidade infantil -a desidratação causada por diarreias e vômitos.
Hoje, a mistura de duas medidas rasas de açúcar com uma rasa de sal, em um litro de água limpa, o famoso soro caseiro, parece daqueles remédios que sempre existiram. Mas até os anos 1980, usavam-se remédios industrializados, comercializados sob patentes e caros.
Dom Paulo havia recebido de James Grant, então diretor-executivo do Unicef, o pedido de que envolvesse a Igreja Católica na difusão do soro, recém-formulado. "Aquilo era como um ovo de Colombo. Podia salvar milhões de vidas, era barato, simples de fazer", lembra o professor de pediatria da Universidade Federal de São Paulo, Fabio Ancona Lopes.
A médica Zilda Arns, à época com 48 anos, 27 de consultório, especialização em pediatria, administração de programas de saúde materno-infantil e saúde pública, ficou encarregada de formatar o programa da nova pastoral. Em 2004, a CNBB deu-lhe outra missão: organizar a Pastoral da Pessoa Idosa.
"Ela fez muito mais do que isso", lembra a deputada federal Luiza Erundina (PSB-SP): "Em vez de simplesmente administrar o soro, ela criou uma rede de agentes comunitários da saúde, a esmagadora maioria dos quais mulheres pobres, que conheciam a forma de multiplicar os conhecimentos que acabavam de adquirir".
"Logo se viu que o modelo da pastoral era um sucesso. O Programa de Saúde da Família, com médicos, enfermeiros e agentes comunitários, tem raízes claras na intervenção da pastoral", diz a deputada.
Zilda Arns, olhos azuis, um forte sotaque alemão, xerox do rosto do irmão dom Paulo, batom forte (ela dizia que tinha aprendido a se maquiar apenas aos 60 anos), aparecia pesando crianças em balanças improvisadas, ensinando a formulação do soro caseiro, distribuindo uma mistura nutritiva, feita de alimentos baratos (a "multimistura da pastoral"), feita de casca de ovo, semente de abóbora, arroz, milho ou fubá, folha de mandioca -antianemia e desnutrição, ela garantia.
A taxa de mortalidade infantil entre as comunidades atendidas pelos voluntários de Zilda Arns era de 13 por mil nascidos vivos, contra a média nacional, de 34,6 por mil.
Em 2001, o então ministro da Saúde, José Serra, apresentou a primeira candidatura oficial brasileira ao Prêmio Nobel da Paz. Levou o nome de Zilda.
"Engana-se quem pense que a doutora Zilda, com sua fala mansa e serena, era uma mulher frágil. Ao contrário, era enérgica, incansável, organizada, determinada", lembrou ontem dom Pedro Luiz Stringhini, coordenador das pastorais sociais da CNBB.
A ação da médica Zilda Arns na Pastoral da Criança enraizava-se no rigor da fé e da moralidade cristã, o que lhe custou a antipatia do movimento feminista brasileiro. A ênfase de seu trabalho era a família.
A professora Maria José Rosado, coordenadora do grupo pró-descriminalização do aborto Católicas pelo Direito de Decidir, se lembrou ontem das décadas de divergências que ela e Zilda Arns acumularam em relação à defesa das mulheres: "A doutora Zilda opunha-se ao aborto, à união civil de pessoas de mesmo sexo, às pesquisas com células-tronco embrionárias. Até mesmo os anticoncepcionais e os preservativos não tinham lugar no mundo da fundadora da Pastoral da Criança".

Colaboraram a Sucursal de Brasília e a Agência Folha



Texto Anterior: Saiba mais: Brasileiros estavam de saída do Haiti
Próximo Texto: "Ela está com a cara serena", diz embaixatriz
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.