São Paulo, quinta-feira, 14 de abril de 2005

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MISSÃO NO CARIBE

ONGs dizem que militares da força internacional liderada pelo Brasil estupram e usam prostituição; general nega

Haitianas acusam missão da ONU de abusos

CAROLINA VILA-NOVA
ENVIADA ESPECIAL A PORTO PRÍNCIPE

Organizações haitianas de direitos humanos e de defesa da mulher estão denunciando a ocorrência de estupros e a utilização de redes de prostituição por parte de tropas da Missão de Estabilização da ONU no Haiti (Minustah).
A Folha teve acesso a alguns dos relatos coletados pelos organismos, que se dizem alarmados com o fenômeno, apesar de reconhecerem a inexistência de uma base de dados que permita avaliar sua total extensão.
O governo haitiano tem conhecimento da existência de denúncias, segundo confirmou à reportagem Camille Magloire, porta-voz do Conselho de Sábios, órgão de assessoramento do governo interino. Magloire não quis, porém, falar sobre casos específicos.
O comandante militar da Minustah, o general brasileiro Augusto Heleno Pereira, negou que as denúncias tenham algum fundamento. A OEA (Organização dos Estados Americanos) disse desconhecer o fenômeno.
"Já é hora de fazer soar o alarme", alertou Myriam Merlet, diretora-executiva da organização feminista Enfofanm.
O episódio mais notório até agora é o suposto estupro de Nadège Nicolas, 23, numa plantação de bananas na cidade de Gonaives, por três soldados paquistaneses, em fevereiro deste ano, segundo informe da organização Sofa (Solidariedade pelas Mulheres Haitianas) após denúncia por moradores locais.
O documento diz que, por ter problemas mentais, a mulher não poderia ter consentido sexo com os homens. Afirma ainda que foram constatadas evidências de brutalidade na moça.
Os soldados, cujos nomes não foram divulgados, alegaram que Nicolas era uma prostituta. Após inquérito por uma comissão da ONU, eles foram repatriados e devem ser julgados em seu país, segundo o general Heleno.

"Cão sem dono"
"A Sofa está extremamente preocupada que os soldados estejam fortemente armados e que usem o poder que têm como meio de tirar vantagem significativa de mulheres", diz o informe. "Eles estão olhando para os haitianos como se fossem cão sem dono."
"São homens que vêm para cá sem mulheres, por tempo indefinido. Temos visto coisas horríveis. Uma menina foi estuprada por um soldado que usou até um pênis falso. Ela ficou destroçada", disse uma médica haitiana.
Para Merlet, o maior problema tem sido documentar os casos existentes. Segundo ela, a maioria das denúncias não segue adiante porque as mulheres retiram as queixas por medo.
Merlet citou como exemplo uma denúncia contra um soldado argentino por assédio sexual de uma mulher em Gonaives, zona sob comando da Argentina. A suposta vítima retirou a acusação antes de uma investigação.
Em Carrefour, na periferia de Porto Príncipe, um soldado brasileiro foi acusado de estupro. Relatório da Enfofanm aponta que a investigação terminou com a incriminação dos "intermediadores" do contato da vítima, apontada como uma prostituta, com o suposto agressor.
Segundo o organismo, o caso do brasileiro está arquivado no escritório regional de proteção ao cidadão. A Minustah não confirma nenhum dos dois casos.
"Parece-nos que há uma tendência de tentar caracterizar casos de abuso sexual como de prostituição", disse Merlet, cuja organização está agora trabalhando na documentação de denúncias de abusos em todo o país. "Mas, para nós, ambos são violações e queremos que os acusados sejam julgados pela Justiça local."
Além de estupro, os organismos afirmam que a presença dos militares têm estimulado a prostituição de mulheres e jovens. Magloire confirma a tendência.
"Começamos a documentar a organização de grupos de prostituição que aliciam mulheres a esses homens [soldados]. É um fenômeno importante porque esses grupos estão bem armados", disse Merlet.
Segundo ela, o problema não é novo para as haitianas. "Em 1994, na última ocupação militar, recolhemos muitos casos de violações de mulheres por militares."
O mandato da ONU estabelece que a Minustah deve "apoiar o governo de transição, assim como as instituições e grupos de direitos humanos haitianos, em seus esforços para promover e proteger os direitos humanos, particularmente de mulheres e crianças, a fim de assegurar a responsabilidade individual por abusos de direitos humanos e reparação para as vítimas".
Os organismos criticam, porém, o fato de as investigações serem realizadas pela ONU.
"A Minustah fala de suas investigações como se fossem um Estado dentro do Estado", criticou Carole Pierre-Paul, coordenadora da Sofa. "Mas a Minustah não é nosso interlocutor, e sim o Estado haitiano. É ele quem deve dar uma resposta."


A ONG Jubileu Sul pagou parte das despesas com transporte e alimentação da jornalista Carolina Vila-Nova no Haiti

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