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ELEIÇÕES NA ARGENTINA
Peronista questiona dívidas e levanta suspeitas sobre privatizações, como o PT antes de chegar ao poder
Kirchner usa a retórica do "velho" PT
DO ENVIADO ESPECIAL A BUENOS AIRES
Renuncie ou não Carlos Menem
à candidatura, Néstor Carlos
Kirchner, 53, acabará chegando à
Casa Rosada, a sede do governo
argentino, com a votação do primeiro turno ou com uma explosão de votos no segundo.
O que não depende da renúncia
é a constatação de que Kirchner
leva para o governo uma retórica
muito parecida com a do PT depois da primeira onda de moderação do partido, mas antes da mais recente guinada ortodoxa.
Exemplo: em vez de se propor a
aumentar o superávit fiscal primário (receitas menos despesas,
fora juros) para poder pagar religiosamente a dívida, como faz o
governo de Luiz Inácio Lula da
Silva, Kirchner fala, uma e outra
vez, em obter uma redução no valor devido ou nos juros cobrados
ou, no mínimo, em uma reprogramação de prazos para que o
pagamento se dê em 50 anos.
Não pagar a dívida nos termos
impostos pelos organismos internacionais foi uma retórica clássica
do PT até recentemente.
Mas o virtual novo presidente
argentino tem um sonho que envolve o governo Lula na questão
da dívida. Em conversa com Martín Granovsky, subdiretor do jornal "Página 12", Kirchner disse que, se for mesmo construído o
"espaço econômico, institucional
e político" no Mercosul e na América do Sul, tal como ele e Lula
propõem, "seguramente os temas
da dívida também serão debatidos em nossos foros comuns. É
natural que seja assim".
Kirchner coincide com o velho
PT também na análise que o partido brasileiro fez das privatizações do governo FHC. Não para
propor a reestatização, mas para
dizer que a maneira como foi feita
a venda do patrimônio estatal é
suspeita.
"Por isso, hoje as privatizações
são vistas com desconfiança pela
maioria dos argentinos", diz
Kirchner.
O Lula que, historicamente, defendeu dialogar com a sociedade
para construir o projeto de governo encontra eco em Kirchner. "A
construção de novas lideranças
não se pode fazer com as características messiânicas de tempos
anteriores. Têm que ser lideranças de consensos, de idéias, de
construção coletiva", repete com
frequência.
Assim como o PT defendeu a
responsabilidade fiscal e o respeito aos contratos, na sua "Carta ao
Povo Brasileiro", quando era
maior a aposta dos mercados financeiros contra Lula, Kirchner
bate na mesma tecla, mas amplia
-e muito- o alcance da responsabilidade.
"Pode-se governar sendo responsável em matéria fiscal e em
matéria de inclusão social, de distribuição de renda, de sistema tributário, de sistema financeiro",
disse ao jornal "Página 12".
De alguma maneira e sem desejá-lo, Kirchner recupera indiretamente uma expressão muito usada por Fernando Henrique Cardoso ("fracassomania"), mas
aplica-a em um contexto diferente.
"O problema é que os que sempre falamos de mudança temos
que acreditar mais em nós mesmos. Não ter tanto medo a ponto
de pensar, antes de cada medida,
que tudo vai saltar em pedaços",
comentou.
Ao definir-se politicamente,
Kirchner não inclui a palavra "socialista", ao contrário do que
ocorre com alguns líderes do PT,
apesar das evidências em contrário. "Sempre falei em criar um espaço nacional, popular, racional,
progressista, integrador", é a sua
autodefinição.
Tão ampla que nela cabe quase
todo o arco político, ao menos retoricamente.
Na prática, a maior aposta de
Kirchner é no velho esquema de
obras públicas, além de uma renegociação da dívida mais favorável
ao Tesouro argentino (o país está
em moratória há mais de um
ano).
Acredita que será possível lançá-las apesar das restrições orçamentárias. O acordo (provisório)
entre o atual governo argentino e
o FMI (Fundo Monetário Internacional) estabelece um superávit
fiscal de 2,5% do PIB (Produto Interno Bruto, medida da renda nacional). Vem sendo cumprindo,
até com sobras, há 11 meses consecutivos.
É um dos motivos de orgulho
para o ministro da Economia, Roberto Lavagna, único nome até
ontem confirmado para ministro
também de Kirchner.
O problema é que se especula
em Buenos Aires que o FMI, para
fazer o acordo definitivo, exigiria
um aumento do superávit para
4%.
Como economizar mais e, ao
mesmo tempo, lançar um programa de obras públicas? A resposta
de Kirchner é clássica: uso mais
racional do dinheiro público, eliminação da corrupção, aumento
da arrecadação decorrente do
crescimento da atividade econômica.
De fato, a economia argentina
está crescendo, neste ano, a uma
taxa razoável, mas não há a menor garantia de sustentabilidade.
Os outros fatores são mais manifestação de desejos do que perspectivas concretas.
De todo modo, obra pública é
uma das maneiras mais imediatas
de criar empregos, um dos dois
grandes problemas sociais da Argentina que Kirchner herdará.
Os desempregados são 2,5 milhões ou 17,8% da força de trabalho.
O outro drama social, inédito na
Argentina, é a explosão da pobreza, que hoje afeta 20,8 milhões de
pessoas ou 57,5% dos argentinos.
No imediato, e aí volta a coincidência com o PT, tudo o que
Kirchner pode prometer é manter
os subsídios (de 150 pesos, mais
ou menos o mesmo em reais) já
concedidos hoje pelo governo,
que beneficiam 2,4 milhões de famílias (uma espécie de Fome Zero
argentino).
Os subsídios foram, talvez, o fator mais forte a determinar uma
razoável tranquilidade social em
um país que, há um ano e meio,
parecia à beira da dissolução. Mas
subsídios desse tipo servem para
sustentar um governo provisório,
como o de Eduardo Duhalde.
Kirchner, agora, é praticamente o
presidente definitivo.
(CLÓVIS ROSSI)
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