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São Paulo, quarta-feira, 14 de maio de 2003

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ELEIÇÕES NA ARGENTINA

Peronista questiona dívidas e levanta suspeitas sobre privatizações, como o PT antes de chegar ao poder

Kirchner usa a retórica do "velho" PT

DO ENVIADO ESPECIAL A BUENOS AIRES

Renuncie ou não Carlos Menem à candidatura, Néstor Carlos Kirchner, 53, acabará chegando à Casa Rosada, a sede do governo argentino, com a votação do primeiro turno ou com uma explosão de votos no segundo.
O que não depende da renúncia é a constatação de que Kirchner leva para o governo uma retórica muito parecida com a do PT depois da primeira onda de moderação do partido, mas antes da mais recente guinada ortodoxa.
Exemplo: em vez de se propor a aumentar o superávit fiscal primário (receitas menos despesas, fora juros) para poder pagar religiosamente a dívida, como faz o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, Kirchner fala, uma e outra vez, em obter uma redução no valor devido ou nos juros cobrados ou, no mínimo, em uma reprogramação de prazos para que o pagamento se dê em 50 anos.
Não pagar a dívida nos termos impostos pelos organismos internacionais foi uma retórica clássica do PT até recentemente.
Mas o virtual novo presidente argentino tem um sonho que envolve o governo Lula na questão da dívida. Em conversa com Martín Granovsky, subdiretor do jornal "Página 12", Kirchner disse que, se for mesmo construído o "espaço econômico, institucional e político" no Mercosul e na América do Sul, tal como ele e Lula propõem, "seguramente os temas da dívida também serão debatidos em nossos foros comuns. É natural que seja assim".
Kirchner coincide com o velho PT também na análise que o partido brasileiro fez das privatizações do governo FHC. Não para propor a reestatização, mas para dizer que a maneira como foi feita a venda do patrimônio estatal é suspeita.
"Por isso, hoje as privatizações são vistas com desconfiança pela maioria dos argentinos", diz Kirchner.
O Lula que, historicamente, defendeu dialogar com a sociedade para construir o projeto de governo encontra eco em Kirchner. "A construção de novas lideranças não se pode fazer com as características messiânicas de tempos anteriores. Têm que ser lideranças de consensos, de idéias, de construção coletiva", repete com frequência.
Assim como o PT defendeu a responsabilidade fiscal e o respeito aos contratos, na sua "Carta ao Povo Brasileiro", quando era maior a aposta dos mercados financeiros contra Lula, Kirchner bate na mesma tecla, mas amplia -e muito- o alcance da responsabilidade.
"Pode-se governar sendo responsável em matéria fiscal e em matéria de inclusão social, de distribuição de renda, de sistema tributário, de sistema financeiro", disse ao jornal "Página 12".
De alguma maneira e sem desejá-lo, Kirchner recupera indiretamente uma expressão muito usada por Fernando Henrique Cardoso ("fracassomania"), mas aplica-a em um contexto diferente.
"O problema é que os que sempre falamos de mudança temos que acreditar mais em nós mesmos. Não ter tanto medo a ponto de pensar, antes de cada medida, que tudo vai saltar em pedaços", comentou.
Ao definir-se politicamente, Kirchner não inclui a palavra "socialista", ao contrário do que ocorre com alguns líderes do PT, apesar das evidências em contrário. "Sempre falei em criar um espaço nacional, popular, racional, progressista, integrador", é a sua autodefinição.
Tão ampla que nela cabe quase todo o arco político, ao menos retoricamente.
Na prática, a maior aposta de Kirchner é no velho esquema de obras públicas, além de uma renegociação da dívida mais favorável ao Tesouro argentino (o país está em moratória há mais de um ano).
Acredita que será possível lançá-las apesar das restrições orçamentárias. O acordo (provisório) entre o atual governo argentino e o FMI (Fundo Monetário Internacional) estabelece um superávit fiscal de 2,5% do PIB (Produto Interno Bruto, medida da renda nacional). Vem sendo cumprindo, até com sobras, há 11 meses consecutivos.
É um dos motivos de orgulho para o ministro da Economia, Roberto Lavagna, único nome até ontem confirmado para ministro também de Kirchner.
O problema é que se especula em Buenos Aires que o FMI, para fazer o acordo definitivo, exigiria um aumento do superávit para 4%.
Como economizar mais e, ao mesmo tempo, lançar um programa de obras públicas? A resposta de Kirchner é clássica: uso mais racional do dinheiro público, eliminação da corrupção, aumento da arrecadação decorrente do crescimento da atividade econômica.
De fato, a economia argentina está crescendo, neste ano, a uma taxa razoável, mas não há a menor garantia de sustentabilidade.
Os outros fatores são mais manifestação de desejos do que perspectivas concretas.
De todo modo, obra pública é uma das maneiras mais imediatas de criar empregos, um dos dois grandes problemas sociais da Argentina que Kirchner herdará.
Os desempregados são 2,5 milhões ou 17,8% da força de trabalho.
O outro drama social, inédito na Argentina, é a explosão da pobreza, que hoje afeta 20,8 milhões de pessoas ou 57,5% dos argentinos.
No imediato, e aí volta a coincidência com o PT, tudo o que Kirchner pode prometer é manter os subsídios (de 150 pesos, mais ou menos o mesmo em reais) já concedidos hoje pelo governo, que beneficiam 2,4 milhões de famílias (uma espécie de Fome Zero argentino).
Os subsídios foram, talvez, o fator mais forte a determinar uma razoável tranquilidade social em um país que, há um ano e meio, parecia à beira da dissolução. Mas subsídios desse tipo servem para sustentar um governo provisório, como o de Eduardo Duhalde. Kirchner, agora, é praticamente o presidente definitivo. (CLÓVIS ROSSI)


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