São Paulo, terça-feira, 14 de junho de 2005

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Mário Soares diz que história não dará razão a Cunhal

TERESA DE SOUSA

Mário Soares, ex-presidente de Portugal, vê hoje Álvaro Cunhal como sempre o viu: um homem que tinha "um projeto totalitário para Portugal", cuja coragem o chegou a fascinar, mas que, no final, "fracassou totalmente".
Leia a seguir a entrevista que Soares, ex-chefe dos socialistas portugueses, concedeu ao jornal "Público", de Lisboa, que também foi publicada hoje.

 

Pergunta - Cunhal é uma figura incontornável do século 20 português. Mas foi também seu maior adversário político. Como o sr. vê hoje seu destino e o dele?
Mário Soares -
Vejo como sempre vi. Ele tinha um projeto totalitário para Portugal, queria instalar uma "democracia popular" do tipo das que havia no Leste Europeu. Considerava a Rússia o sol da terra, era esse o seu objetivo.
Eu, que tinha estado em algumas dessas "democracias populares" e sabia o que eram de tirania e opressão, opus-me a isso. E o Partido Socialista opôs-se. E o povo português também se opôs. Foi o povo português que decidiu a batalha, mesmo que liderado pelo PS. Eu fui apenas um intérprete, que se opôs com todas as suas forças a isso, porque queria uma democracia pluralista ocidental. Ele era contra a Europa, eu era a favor da Comunidade Européia.

Pergunta - O sr. venceu essa batalha, não é?
Soares -
E ele reconheceu isso. Naquele último debate que tivemos os dois, em comemoração dos 20 anos de outro célebre debate, ao vivo na televisão [em Outubro de 1975], ele reconheceu que tinha perdido a batalha, como tinha perdido a batalha a respeito da integração na Europa, mas disse que a história um dia lhe daria razão.

Pergunta - A história provavelmente não lhe dará razão, não é?
Soares -
Não. Tenho a convicção profunda de que a história nunca lhe dará razão.

Pergunta - Mas como o sr. explica que Cunhal nunca tenha compreendido o seu tempo?
Soares -
Ele era um bloco. Era essa a sua forma de adesão ao Partido Comunista, que não quebrou nunca. Nunca compreendeu o soneto de Camões que diz "mudam-se os tempos, mudam-se as vontades", que o mundo é feito de permanente mudança.

Pergunta - Cunhal marcou, no entanto, a sua formação quando era jovem. O que o sr. reteve dessa influência?
Soares -
Com o contrabalanço importantíssimo do Agostinho da Silva e do Álvaro Salema, que foram meus professores na mesma época e com a influência do meu pai, que era um republicano, tolerante, aberto e um pouco irônico em relação aos comunistas, a quem chamava, quando falava comigo, os "teus camaradinhas".
Mas Cunhal exerceu sobre mim num certo momento um grande fascínio. Afinal, eu tinha uma grande admiração pelo lutador corajoso, pelo homem que tinha estado na cadeia e que se preparava para ir para a clandestinidade. Um homem que era um intelectual de rara consistência, mas que punha acima disso a sua condição de militante comunista. E que chegava a lamentar não ser proletário.

Pergunta - O sr. pensa que é essa defasagem em relação à história que marca a vida de Cunhal, que acentua o seu caráter trágico?
Soares -
Há realmente uma certa tragédia na maneira como tudo acabou. Ele ficou sempre igual a si próprio, e nem sequer a implosão do universo comunista, que se concretizou na sua vida, o abalou nas suas convicções. Ou, pelo menos, se se insinuou alguma dúvida no seu espírito, ele nunca a projetou em público.

Pergunta - O sr. pensa que foi o peso da figura de Cunhal que impediu que o PCP fizesse a sua "atualização", como fizeram outros partidos comunistas da Europa?
Soares -
É evidente que Cunhal marcou o seu partido, se o comparamos, por exemplo, com o que é Santiago Carrillo [antigo líder do partido Comunista de Espanha]. Tive a felicidade de ser amigo - e ainda sou - de Carrillo e de o ter chamado várias vezes a Portugal, o que levou Cunhal a cortar relações com ele. Isso mostra como eles eram diferentes.
Quando encontrei pela primeira vez Santiago Carrillo, ele deu-me o número de telefone, convidou-me para ir a casa dele tomar café e apresentou-me à sua família, com a naturalidade de qualquer pessoa. Cunhal sempre foi secreto. Nunca me falou da família, nunca deixava que se falasse de coisas de natureza pessoal, e, estando os dois no exílio, em Paris, eu nunca soube onde ele morava. Para marcar um encontro eram precisos intermediários.

Pergunta - Como o sr. acha que o país vai se recordar dele?
Soares -
Era um homem com uma força de caráter muito grande, que foi valente, um homem de grandes convicções, mas que, ao mesmo tempo, tinha um projeto político que fracassou totalmente. A história não lhe vai dar nunca razão.

Pergunta - O sr. pensa que o PCP vai ser diferente sem ele?
Soares -
Não tenho certeza. As pessoas que dirigem o PCP e que eu conheço foram formadas no mesmo molde. Vai ter de passar algum tempo para que se desanuvie. Ainda hoje ouvi o Carlos Brito [antigo dirigente comunista, que se afastou] dizendo que Cunhal fez muito mal ao partido nos últimos anos.


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