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Mário Soares diz que história não dará razão a Cunhal
TERESA DE SOUSA
Mário Soares, ex-presidente de
Portugal, vê hoje Álvaro Cunhal
como sempre o viu: um homem
que tinha "um projeto totalitário
para Portugal", cuja coragem o
chegou a fascinar, mas que, no final, "fracassou totalmente".
Leia a seguir a entrevista que
Soares, ex-chefe dos socialistas
portugueses, concedeu ao jornal
"Público", de Lisboa, que também foi publicada hoje.
Pergunta - Cunhal é uma figura
incontornável do século 20 português. Mas foi também seu maior
adversário político. Como o sr. vê
hoje seu destino e o dele?
Mário Soares - Vejo como sempre vi. Ele tinha um projeto totalitário para Portugal, queria instalar uma "democracia popular" do
tipo das que havia no Leste Europeu. Considerava a Rússia o sol da
terra, era esse o seu objetivo.
Eu, que tinha estado em algumas dessas "democracias populares" e sabia o que eram de tirania e
opressão, opus-me a isso. E o Partido Socialista opôs-se. E o povo
português também se opôs. Foi o
povo português que decidiu a batalha, mesmo que liderado pelo
PS. Eu fui apenas um intérprete,
que se opôs com todas as suas forças a isso, porque queria uma democracia pluralista ocidental. Ele
era contra a Europa, eu era a favor
da Comunidade Européia.
Pergunta - O sr. venceu essa batalha, não é?
Soares - E ele reconheceu isso.
Naquele último debate que tivemos os dois, em comemoração
dos 20 anos de outro célebre debate, ao vivo na televisão [em Outubro de 1975], ele reconheceu
que tinha perdido a batalha, como
tinha perdido a batalha a respeito
da integração na Europa, mas disse que a história um dia lhe daria
razão.
Pergunta - A história provavelmente não lhe dará razão, não é?
Soares - Não. Tenho a convicção
profunda de que a história nunca
lhe dará razão.
Pergunta - Mas como o sr. explica
que Cunhal nunca tenha compreendido o seu tempo?
Soares - Ele era um bloco. Era essa a sua forma de adesão ao Partido Comunista, que não quebrou
nunca. Nunca compreendeu o soneto de Camões que diz "mudam-se os tempos, mudam-se as
vontades", que o mundo é feito de
permanente mudança.
Pergunta - Cunhal marcou, no entanto, a sua formação quando era
jovem. O que o sr. reteve dessa influência?
Soares - Com o contrabalanço
importantíssimo do Agostinho da
Silva e do Álvaro Salema, que foram meus professores na mesma
época e com a influência do meu
pai, que era um republicano, tolerante, aberto e um pouco irônico
em relação aos comunistas, a
quem chamava, quando falava
comigo, os "teus camaradinhas".
Mas Cunhal exerceu sobre mim
num certo momento um grande
fascínio. Afinal, eu tinha uma
grande admiração pelo lutador
corajoso, pelo homem que tinha
estado na cadeia e que se preparava para ir para a clandestinidade.
Um homem que era um intelectual de rara consistência, mas que
punha acima disso a sua condição
de militante comunista. E que
chegava a lamentar não ser proletário.
Pergunta - O sr. pensa que é essa
defasagem em relação à história
que marca a vida de Cunhal, que
acentua o seu caráter trágico?
Soares - Há realmente uma certa
tragédia na maneira como tudo
acabou. Ele ficou sempre igual a si
próprio, e nem sequer a implosão
do universo comunista, que se
concretizou na sua vida, o abalou
nas suas convicções. Ou, pelo menos, se se insinuou alguma dúvida
no seu espírito, ele nunca a projetou em público.
Pergunta - O sr. pensa que foi o
peso da figura de Cunhal que impediu que o PCP fizesse a sua "atualização", como fizeram outros partidos comunistas da Europa?
Soares - É evidente que Cunhal
marcou o seu partido, se o comparamos, por exemplo, com o que
é Santiago Carrillo [antigo líder
do partido Comunista de Espanha]. Tive a felicidade de ser amigo - e ainda sou - de Carrillo e
de o ter chamado várias vezes a
Portugal, o que levou Cunhal a
cortar relações com ele. Isso mostra como eles eram diferentes.
Quando encontrei pela primeira vez Santiago Carrillo, ele deu-me o número de telefone, convidou-me para ir a casa dele tomar
café e apresentou-me à sua família, com a naturalidade de qualquer pessoa. Cunhal sempre foi
secreto. Nunca me falou da família, nunca deixava que se falasse
de coisas de natureza pessoal, e,
estando os dois no exílio, em Paris, eu nunca soube onde ele morava. Para marcar um encontro
eram precisos intermediários.
Pergunta - Como o sr. acha que o
país vai se recordar dele?
Soares - Era um homem com
uma força de caráter muito grande, que foi valente, um homem de
grandes convicções, mas que, ao
mesmo tempo, tinha um projeto
político que fracassou totalmente.
A história não lhe vai dar nunca
razão.
Pergunta - O sr. pensa que o PCP
vai ser diferente sem ele?
Soares - Não tenho certeza. As
pessoas que dirigem o PCP e que
eu conheço foram formadas no
mesmo molde. Vai ter de passar
algum tempo para que se desanuvie. Ainda hoje ouvi o Carlos Brito
[antigo dirigente comunista, que
se afastou] dizendo que Cunhal
fez muito mal ao partido nos últimos anos.
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