São Paulo, domingo, 14 de julho de 2002

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SOCIEDADE

Atentados de 11 de setembro contra os EUA motivam discussão de questões consideradas delicadas até agora

Arábia Saudita repensa sua relação com o Ocidente

NEIL MACFARQUHAR
DO "THE NEW YORK TIMES", EM JIDDA

Movida pelos ataques de 11 de setembro nos Estados Unidos, está começando a acontecer na sociedade saudita uma discussão cautelosa sobre a intolerância em relação aos não-muçulmanos e sobre as atitudes em relação ao Ocidente, algumas das quais começam a ser vistas como inspiradoras de uma violência inaceitável. A discussão parece representar uma mudança significativa numa sociedade que tende a ver tais questionamentos como tabu.
Basta mencionar em praticamente qualquer ambiente repleto de pessoas aqui que 15 dos 19 sequestradores envolvidos nos atentados eram sauditas, e as negações continuam a jorrar. Não há provas concretas nesse sentido, acrescentando que, mesmo que Osama bin Laden, saudita, tenha de fato tido algum envolvimento com os ataques, ele deve ter sido induzido ao erro pelos egípcios radicais que o cercam.
Mas algumas rachaduras começam a aparecer nessa fachada de negação. Um pequeno grupo de intelectuais, acadêmicos, jornalistas e doutores em religião vem sugerindo, sem alarde, que é chegada a hora de fazer algumas mudanças. "Precisamos olhar de frente para muitas coisas que pensávamos ser normais", disse Khaled M. Batarfi, editor administrativo do diário "Al Madina", que procura ampliar os limites do que é possível publicar no país. "Precisamos analisar as opiniões que resultaram nessas ações negativas e ver se estão erradas, ou se foram apenas tomadas fora de contexto. Antes de 11 de setembro, dizer "acho que devemos odiar os outros" não passava de uma opinião. Depois dessa data, descobrimos que alguns desses pensamentos resultaram em ações que nos prejudicaram, na medida em que levaram todos os muçulmanos a serem postos no banco dos réus."
Posturas como a dele ainda são vistas como polêmicas. Quando dezenas de acadêmicos e estudiosos de religião sauditas lançaram um manifesto sugerindo que os muçulmanos talvez possam encontrar algo em comum com o Ocidente, tornaram-se alvo das críticas acirradas dos setores que aceitam a idéia de que o islã se fortalece com a hostilidade em relação aos infiéis.
"Vocês criam a falsa impressão de que muita gente condenou a guerra contra a América", disse uma dessas críticas divulgada em um site. "Mas a verdade é que muitas pessoas ficaram felizes em declarar esta guerra, que proporcionou aos muçulmanos um sentimento de alívio."
Em outro site, o xeque Hamad Rais al Rais, um estudioso idoso e cego, comentou que os redatores do manifesto deram mostras de solidariedade demais para com as vítimas de 11 de setembro e aviltaram o islã, ao deixarem de mencionar que a guerra santa ainda é um dos seus princípios básicos.
"Vocês choram pelo que aconteceu com os americanos em seus mercados, escritórios e ministérios, além dos desastres que eles viveram", ele escreveu, "e esquecem a opressão, a injustiça e as agressões impostas pelos mesmos americanos ao mundo islâmico."
Diversos fatores vêm alimentando essa discussão. Desde 11 de setembro, a monarquia reduziu um pouco a repressão movida à livre expressão. Além disso, um incêndio fatal ocorrido numa escola feminina em Meca trouxe à tona alguns dos custos internos da opinião extremista, quando alunas do colégio teriam morrido porque os bombeiros foram impedidos de socorrê-las porque elas não estariam adequadamente cobertas com véus.
Em junho, o governo anunciou a prisão de integrantes de uma célula da rede Al Qaeda, depois de a família real ter passado meses negando que a rede tivesse quaisquer defensores no país.
Mas qualquer discussão aberta ainda terá de superar obstáculos consideráveis, entre os quais os ataques imediatos do clero de linha dura e de outros estudiosos de influência considerável.
A xenofobia domina as discussões religiosas de maneira não encontrada em nenhum outro lugar no mundo islâmico.
As livrarias nas cidades santas de Meca e Medina, por exemplo, vendem um volume de 1.265 páginas de recordações da região que é uma espécie de catálogo dos "maiores sucessos" em termos de fatwas referentes à vida moderna.
O livro é repleto de normas de conduta e proibições relativas a não-muçulmanos: não sorria para eles, não lhes deseje o bem em suas férias, não se dirija a eles como "amigo".
Uma fatwa [decreto religioso] emitida pelo xeque Muhammad bin Othaimeen, cujo funeral, no ano passado, atraiu centenas de milhares de pessoas, discute se o bom muçulmano pode ou não viver em terras infiéis. "O fiel que for obrigado a viver no exterior deve alimentar a inimizade e o ódio pelos infiéis e evitar fazer deles seus amigos", diz parte da sentença. Os sauditas de modo geral, e os príncipes mais velhos em especial, rejeitam a idéia de que esse tipo de ensinamento possa ajudar a fomentar o surgimento de terroristas. "É claro que eu o odeio -você é cristão", explica um professor de direito islâmico em Riad a um jornalista. "Mas isso não significa que eu queira matá-lo."
O príncipe Sattam bin Abel Aziz -que, aos 61 anos, é um dos irmãos mais jovens do rei Fahd e há anos o vice-governador de Riad- conduz audiências num gabinete do tamanho de metade de um campo de futebol. As paredes são de pedra branca, e o carpete traz motivos beduínos modernos -faixas de triângulos e outras formas geométricas executadas em azul e rosa. Indagado sobre fatwas como as acima mencionadas, o príncipe responde: "Não se pode dizer que essas pessoas representem o islã". Para exemplificar sua tolerância, menciona que estudou numa universidade católica em San Diego.
"Não estou dizendo que não existam extremistas na Arábia Saudita, mas não são tantos quanto as pessoas imaginam ou que a imprensa mostra", diz ele, levando a conversa de volta aos atentados do dia 11 de setembro. "Dizem que os 15 que fizeram isso são sauditas. Mas eles estavam no Afeganistão. Criaram suas idéias fora da Arábia Saudita."
Essa é, sem dúvida, a visão prevalecente aqui, apesar da percepção generalizada que se tem, fora da Arábia Saudita, de que Bin Laden procura usar ensinamentos comuns no país para justificar as posturas violentamente antiocidentais de sua organização, a Al Qaeda. Mas alguns empresários, intelectuais e religiosos sauditas acham que o clero de fato fomenta a intolerância.
Um executivo de Jidda diz, falando do clero saudita: "Se você é contra os clérigos, é contra o islã. Se os critica, está criticando o islã". Por esse motivo, ninguém ousa argumentar diretamente contra os ensinamentos.


Tradução de Clara Allain

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