São Paulo, domingo, 14 de agosto de 2005

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AMÉRICA DO SUL

Para María Corina Machado, líder de ONG que pode ser presa por conspiração, democracia no país é muito frágil

Mundo entende mal Venezuela, diz ativista

Kevin Lamarque - 31.mai.2005/Reuters
O presidente dos EUA, George W. Bush, recebe a venezuelana María Corina Machado, líder da organização Súmate, na Casa Branca


CAROLINA VILA-NOVA
DA REDAÇÃO

A visão da comunidade internacional sobre a Venezuela é superficial e por vezes equivocada. Essa é a avaliação de María Corina Machado, 37, dirigente da Súmate, organização de monitoração eleitoral que acabou se tornando um porta-voz da oposição ao governo do presidente Hugo Chávez.
Com a experiência de quem responde a processo na Justiça venezuelana por conspiração e já foi recebida pelo presidente George W. Bush na Casa Branca, Machado demonstra preocupação com o panorama político do país.
"Se fizermos uma análise dos princípios tradicionalmente e internacionalmente utilizados para definir a existência de democracia, vemos que a democracia na Venezuela é muito frágil e que as tendências são até mais preocupantes", diz.
Leia a entrevista que Machado deu à Folha na última quinta-feira, por telefone, de Caracas.

Folha - Como a sra. avalia o panorama político hoje na Venezuela?
María Corina Machado
- É um panorama muito complexo, de grande conflitividade, e para fazer uma análise justa é preciso discernimento porque nossa impressão é que, à distância, a perspectiva da comunidade internacional é superficial e pode levar a conclusões equivocadas. Um problema fundamental na Venezuela é de instituições, no qual progressivamente todas as instituições foram perdendo credibilidade e legitimidade frente a setores majoritários do país. E isso gerou comportamentos que não são coerentes com os princípios democráticos.
Se fizermos uma análise dos princípios que tradicionalmente e internacionalmente se utilizam para definir a existência de democracia, e que estão refletidos na carta interamericana - a independência de poderes, o respeito ao Estado de direito, o respeito às liberdades básicas, o respeito aos direitos humanos, a possibilidade de ter eleições livres e limpas, que o setor militar esteja subordinado à autoridade civil, que haja pluripartidarismo, que haja participação popular, e que haja uma gestão pública transparente, que preste contas-, se analisarmos objetivamente cada um desses princípios, vemos que a democracia na Venezuela é muito frágil e que as tendências são até mais preocupantes.

Folha - Que tendências são essas?
Machado
- Tendências em que se verificam em cada um desses pontos cada vez menor possibilidade que sejam respeitados e que sejam percebidos pelos cidadãos como espaços que estão ali.
Para falar de um elemento fundamental, que é a independência dos Poderes. Na Venezuela existe a Assembléia Nacional, o Poder Judiciário, o Poder Eleitoral, o Poder Cidadão, que é integrado pelo controlador-geral, o defensor do povo e o procurador-geral, e o Poder Executivo. Hoje, todos os poderes estão controlados pelo Poder Executivo. Há um Tribunal Supremo de Justiça cujo presidente publicamente diz que todos os magistrados que pretendam continuar como tais devem ser leais à "revolução" [bolivariana].
Temos um Conselho Nacional Eleitoral [CNE] no qual quatro de seus cinco membros são publicamente a favor do oficialismo. Temos uma Assembléia Nacional que, violando a Constituição, tomou decisões que requeriam maioria qualificada por maioria simples, e que para isso mudou o regimento interno sete vezes.
E finalmente o procurador-geral é ex-vice-presidente da República, o controlador-geral foi nomeado pelo presidente e o defensor público é próximo ao presidente, de maneira que não existe uma possibilidade para os cidadãos de recorrer a essas instâncias para fazer valer seus direitos.

Folha - Como a sra. explica o processo que responde na Justiça venezuelana com outros dirigentes da Súmate? O que é a conspiração de que vocês são acusados?
Machado
- Confesso que nem nós mesmos entendemos muito. O que para nós é claro é que é uma ação de ordem política e sem sustento legal. O suposto delito é ter recebido US$ 31 mil do National Endowment for Democracy, uma organização que recebe recursos do Congresso dos EUA, que está em uns 80 países e que na Venezuela financiou outras 20 ONGs. A única ONG que foi acusada é a Súmate. A promotora diz que nós somos os únicos acusados porque o problema não é receber dinheiro de fora, mas o uso que a Súmate fez desses recursos [a lei proíbe o uso de recursos estrangeiros em atividades políticas internas].
Tentamos apresentar as provas de que esse dinheiro foi recebido para realizar 24 oficinas de educação popular nos distintos Estados da Venezuela para formar facilitadores sobre o marco jurídico e eleitoral do nosso país. Não tinha nenhuma relação com qualquer processo eleitoral. Pedimos à promotora que recebesse as contas e a movimentação bancária, todos os materiais usados pelos professores e pelos alunos. Ela respondeu que isso não era relevante para a investigação e nos indiciou.
A acusação é de "conspiração para destruir a forma republicana de governo". Tem uma pena de entre oito e 16 anos de prisão.

Folha - E a sr. teme ser presa?
Machado
- Estamos muito assustados. Isso é claramente um processo em que todas as motivações são de ordem política. Cerca de 80% dos juízes na Venezuela são provisórios. Deveriam ser selecionados por concurso, mas são nomeados a dedo por períodos de três meses, de modo que têm muito medo de que, se não tomam as decisões alinhadas com os interesses políticos de quem controla o Tribunal Supremo de Justiça e o sistema judicial, também sejam prejudicados. Assim, a possibilidade de ter um julgamento justo em nosso país hoje é muito reduzido.
O nível das pessoas que testemunharam contra nós é muito elevado: são o vice-presidente da República, o embaixador na OEA, membros da Assembléia Nacional, ou seja, são pessoas de altíssimo poder no país, o que demonstra que há uma intenção clara de nos assustar, de nos fazer calar.

Folha - Como a sra. explica a alta popularidade de Chávez, de 70%?
Machado
- Há aí dois elementos. Primeiro, quando se analisam as pesquisas, há que levar em conta que na Venezuela há um ambiente de intimidação muito profundo, às vezes com o uso de mecanismos muito sutis. Essas mesmas pesquisas falavam de uma participação nas eleições da ordem de 70%, algumas até de 80%. Segundo nossos cálculos, nas eleições de domingo [municipais], 78,1% não foram votar, apesar das campanhas do CNE do governo.
Aqui há uma mensagem: até que ponto, em um país em que as pessoas têm medo do governo, as pessoas dizem toda a verdade nas pesquisas? Não estou dizendo que elas devem ser descartadas completamente, mas que têm uma margem de erro importante. As pesquisas são feitas de casa em casa. E a pessoa que abre sua porta sempre pode pensar que esse indivíduo trabalha para o governo e pode saber onde encontrá-la.
Outra questão é que as pesquisas fazem uma distinção entre popularidade e intenção de voto. Falam de popularidade de 60% ou 70%, mas quando falam de intenção de voto, as respostas ficam entre 47% e 55%. Agora, sem dúvida nenhuma, seja 47% ou 55%, são níveis altíssimos para um presidente que já está no poder há sete anos, isso há que reconhecer.
A realidade é que o presidente Chávez tem uma imensa habilidade pessoal para estabelecer um contato emocional profundo, afetivo, com setores muito amplos da população, que se sentiam excluídos por muitíssimos anos e que sentem que por fim existem, que há alguém que fala a eles.
Do ponto de vista dos indicadores sociais, a pobreza aumentou em dez pontos percentuais no país nos últimos sete anos. O desemprego aumentou ano após ano, ao ponto de que o Instituto Nacional de Estatística se viu obrigado a mudar a forma de cálculo do desemprego e do emprego informal porque as cifras continuavam aumentando.
Do ponto de vista estrutural, os problemas sociais se agravaram, mas não na percepção das pessoas. Chávez colocou em prática programas de ordem assistencial que foram muito eficazes. Isso é inegável. Ele colocou no debate nacional como uma prioridade a inclusão de setores que se sentiram excluídos da vida política, econômica, trabalhista e social de nosso país durante muitos anos.

Folha - Como funciona o processo de intimidação de que a sra. falou?
Machado
- Há distintos mecanismos. O governo desenhou múltiplas campanhas de ordem assistencial que já mencionei, a que chamou de missões. Nelas foram incorporadas dezenas de milhares de cidadãos -o governo fala de milhões, mas é difícil saber quantos são. Em todo caso, o governo consegue localizar cada uma dessas pessoas, quem são, onde vivem e como, suas famílias, e obviamente dá a elas um incentivo econômico periódico para participar nessas missões. Isso foi gerando um mecanismo de informação por parte do governo sem precedentes.
Além disso, no ano passado, Chávez ordenou ao presidente do CNE que fossem entregues cópias de todas as planilhas com os nomes de quem solicitou o plebiscito revogatório presidencial ao deputado Luis Tascón. Ele tomou toda essa informação, transcreveu numa base de dados eletrônica e a colocou na internet. E todos os ministérios, as organizações e universidade públicas, os institutos estatais, começaram a verificar quem havia assinado a favor do presidente ou não. Há múltiplas denúncias de pessoas que foram despedidas, desempregados que não conseguiram os empregos que buscavam, pessoas que perderam os benefícios que recebiam nas missões, por ter assinado contra o presidente.
A lista de Tascón é a página mais triste da perseguição política no nosso país porque foi feita de maneira sistemática, maciça, eficiente e promovida como uma política de Estado a partir da Presidência da República. Tanto foi assim que no início deste ano, Chávez, numa declaração à nação por TV, disse: "reconheço que a lista de Tascón já cumpriu seu propósito, é hora de enterrá-la". Essa foi a aceitação pública de que houve perseguição política.

Folha - O que a sra. acha de ter sido recebida por Bush, de ter tamanho trânsito na Casa Branca?
Machado
- Creio que, em qualquer país onde eu vá, se o presidente me dá a oportunidade de falar sobre o que está acontecendo no meu país, sob a minha perspectiva como cidadã, é uma oportunidade extraordinária que não se pode deixar de aproveitar.
Depois dessa entrevista, houve maior interesse de setores de outros países em relação à Venezuela e se está ouvindo mais a voz das organizações como nós, que não somos partidos políticos, mas que temos um papel fundamental em nosso país na defesa da democracia, sobretudo em uma conjuntura em que os partidos políticos estão tão debilitados.
Essa é a minha leitura do encontro com Bush: que foi uma oportunidade extraordinária de dar a conhecer a uma pessoa muito importante qual é a perspectiva dos cidadãos venezuelanos, como vemos os principais desafios, riscos e ameaças, mas também de falar ao resto do mundo.

Folha - Tendo recebido fundos dos EUA, qual é a participação ou influência americana na Súmate?
Machado
- Também recebemos recursos do governo do Canadá e da Konrad Adenauer, da Alemanha. Ou seja, há outros países que também nos apoiaram financeiramente. Evidentemente, não aceitamos recursos de nenhuma organização ou pessoa que imponha condições sobre o comportamento da nossa organização, seja estrangeira ou nacional. Prestamos contas apenas aos cidadãos da Venezuela. Divulgamos publicamente nosso informes financeiros. Nosso orçamento é bem pequeno e, com exceção de umas 20 pessoas, trabalhamos fundamentalmente com voluntários.

Folha - A sra. concorda com acusações de que Chávez desestabiliza a região por apoiar grupos subversivos em países vizinhos?
Machado
- Não me consta que o governo venezuelano financie grupos em outros países. São rumores, denúncias feitas dentro e fora do país de que não temos evidências. Do que sim há provas, e é muito preocupante apesar de não ter relação com esse financiamento, é que foram identificados dois líderes de guerrilhas colombianas, Rodrigo Granda, o chanceler das Farc, e um senhor a quem chamam de "El Chigüiro", que receberam nacionalidade venezuelana uma semana antes do plebiscito e que votaram, conforme consta do registro eleitoral.

Folha - Que papel pode ter o Brasil nesse cenário político?
Machado
- O Brasil tem a possibilidade de assumir uma liderança regional extraordinária. Sentimos, no caso concreto da Venezuela, que o governo do Brasil tem a possibilidade de influenciar e de pressionar e, como cidadãos venezuelanos, temos esperança de que isso ocorra de maneira clara, de maneira contundente. Que os venezuelanos, e não somente o governo, tenhamos sinais de que contamos com o povo brasileiro na defesa dos nossos direitos.

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