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AMÉRICA DO SUL
Para María Corina Machado, líder de ONG que pode ser presa por conspiração, democracia no país é muito frágil
Mundo entende mal Venezuela, diz ativista
Kevin Lamarque - 31.mai.2005/Reuters
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O presidente dos EUA, George W. Bush, recebe a venezuelana María Corina Machado, líder da organização Súmate, na Casa Branca |
CAROLINA VILA-NOVA
DA REDAÇÃO
A visão da comunidade internacional sobre a Venezuela é superficial e por vezes equivocada. Essa
é a avaliação de María Corina Machado, 37, dirigente da Súmate,
organização de monitoração eleitoral que acabou se tornando um
porta-voz da oposição ao governo
do presidente Hugo Chávez.
Com a experiência de quem responde a processo na Justiça venezuelana por conspiração e já foi
recebida pelo presidente George
W. Bush na Casa Branca, Machado demonstra preocupação com
o panorama político do país.
"Se fizermos uma análise dos
princípios tradicionalmente e internacionalmente utilizados para
definir a existência de democracia, vemos que a democracia na
Venezuela é muito frágil e que as
tendências são até mais preocupantes", diz.
Leia a entrevista que Machado
deu à Folha na última quinta-feira, por telefone, de Caracas.
Folha - Como a sra. avalia o panorama político hoje na Venezuela?
María Corina Machado - É um
panorama muito complexo, de
grande conflitividade, e para fazer
uma análise justa é preciso discernimento porque nossa impressão
é que, à distância, a perspectiva da
comunidade internacional é superficial e pode levar a conclusões
equivocadas. Um problema fundamental na Venezuela é de instituições, no qual progressivamente todas as instituições foram perdendo credibilidade e legitimidade frente a setores majoritários do
país. E isso gerou comportamentos que não são coerentes com os
princípios democráticos.
Se fizermos uma análise dos
princípios que tradicionalmente e
internacionalmente se utilizam
para definir a existência de democracia, e que estão refletidos na
carta interamericana - a independência de poderes, o respeito
ao Estado de direito, o respeito às
liberdades básicas, o respeito aos
direitos humanos, a possibilidade
de ter eleições livres e limpas, que
o setor militar esteja subordinado
à autoridade civil, que haja pluripartidarismo, que haja participação popular, e que haja uma gestão pública transparente, que
preste contas-, se analisarmos
objetivamente cada um desses
princípios, vemos que a democracia na Venezuela é muito frágil e
que as tendências são até mais
preocupantes.
Folha - Que tendências são essas?
Machado - Tendências em que
se verificam em cada um desses
pontos cada vez menor possibilidade que sejam respeitados e que
sejam percebidos pelos cidadãos
como espaços que estão ali.
Para falar de um elemento fundamental, que é a independência
dos Poderes. Na Venezuela existe
a Assembléia Nacional, o Poder
Judiciário, o Poder Eleitoral, o Poder Cidadão, que é integrado pelo
controlador-geral, o defensor do
povo e o procurador-geral, e o Poder Executivo. Hoje, todos os poderes estão controlados pelo Poder Executivo. Há um Tribunal
Supremo de Justiça cujo presidente publicamente diz que todos
os magistrados que pretendam
continuar como tais devem ser
leais à "revolução" [bolivariana].
Temos um Conselho Nacional
Eleitoral [CNE] no qual quatro de
seus cinco membros são publicamente a favor do oficialismo. Temos uma Assembléia Nacional
que, violando a Constituição, tomou decisões que requeriam
maioria qualificada por maioria
simples, e que para isso mudou o
regimento interno sete vezes.
E finalmente o procurador-geral é ex-vice-presidente da República, o controlador-geral foi nomeado pelo presidente e o defensor público é próximo ao presidente, de maneira que não existe
uma possibilidade para os cidadãos de recorrer a essas instâncias
para fazer valer seus direitos.
Folha - Como a sra. explica o processo que responde na Justiça venezuelana com outros dirigentes
da Súmate? O que é a conspiração
de que vocês são acusados?
Machado - Confesso que nem
nós mesmos entendemos muito.
O que para nós é claro é que é uma
ação de ordem política e sem sustento legal. O suposto delito é ter
recebido US$ 31 mil do National
Endowment for Democracy, uma
organização que recebe recursos
do Congresso dos EUA, que está
em uns 80 países e que na Venezuela financiou outras 20 ONGs.
A única ONG que foi acusada é a
Súmate. A promotora diz que nós
somos os únicos acusados porque
o problema não é receber dinheiro de fora, mas o uso que a Súmate fez desses recursos [a lei proíbe
o uso de recursos estrangeiros em
atividades políticas internas].
Tentamos apresentar as provas
de que esse dinheiro foi recebido
para realizar 24 oficinas de educação popular nos distintos Estados
da Venezuela para formar facilitadores sobre o marco jurídico e
eleitoral do nosso país. Não tinha
nenhuma relação com qualquer
processo eleitoral. Pedimos à promotora que recebesse as contas e
a movimentação bancária, todos
os materiais usados pelos professores e pelos alunos. Ela respondeu que isso não era relevante para a investigação e nos indiciou.
A acusação é de "conspiração
para destruir a forma republicana
de governo". Tem uma pena de
entre oito e 16 anos de prisão.
Folha - E a sr. teme ser presa?
Machado - Estamos muito assustados. Isso é claramente um
processo em que todas as motivações são de ordem política. Cerca
de 80% dos juízes na Venezuela
são provisórios. Deveriam ser selecionados por concurso, mas são
nomeados a dedo por períodos de
três meses, de modo que têm
muito medo de que, se não tomam as decisões alinhadas com
os interesses políticos de quem
controla o Tribunal Supremo de
Justiça e o sistema judicial, também sejam prejudicados. Assim, a
possibilidade de ter um julgamento justo em nosso país hoje é
muito reduzido.
O nível das pessoas que testemunharam contra nós é muito
elevado: são o vice-presidente da
República, o embaixador na OEA,
membros da Assembléia Nacional, ou seja, são pessoas de altíssimo poder no país, o que demonstra que há uma intenção clara de
nos assustar, de nos fazer calar.
Folha - Como a sra. explica a alta
popularidade de Chávez, de 70%?
Machado - Há aí dois elementos.
Primeiro, quando se analisam as
pesquisas, há que levar em conta
que na Venezuela há um ambiente de intimidação muito profundo, às vezes com o uso de mecanismos muito sutis. Essas mesmas pesquisas falavam de uma
participação nas eleições da ordem de 70%, algumas até de 80%.
Segundo nossos cálculos, nas eleições de domingo [municipais],
78,1% não foram votar, apesar das
campanhas do CNE do governo.
Aqui há uma mensagem: até
que ponto, em um país em que as
pessoas têm medo do governo, as
pessoas dizem toda a verdade nas
pesquisas? Não estou dizendo que
elas devem ser descartadas completamente, mas que têm uma
margem de erro importante. As
pesquisas são feitas de casa em casa. E a pessoa que abre sua porta
sempre pode pensar que esse indivíduo trabalha para o governo e
pode saber onde encontrá-la.
Outra questão é que as pesquisas fazem uma distinção entre popularidade e intenção de voto. Falam de popularidade de 60% ou
70%, mas quando falam de intenção de voto, as respostas ficam entre 47% e 55%. Agora, sem dúvida
nenhuma, seja 47% ou 55%, são
níveis altíssimos para um presidente que já está no poder há sete
anos, isso há que reconhecer.
A realidade é que o presidente
Chávez tem uma imensa habilidade pessoal para estabelecer um
contato emocional profundo, afetivo, com setores muito amplos
da população, que se sentiam excluídos por muitíssimos anos e
que sentem que por fim existem,
que há alguém que fala a eles.
Do ponto de vista dos indicadores sociais, a pobreza aumentou
em dez pontos percentuais no
país nos últimos sete anos. O desemprego aumentou ano após
ano, ao ponto de que o Instituto
Nacional de Estatística se viu
obrigado a mudar a forma de cálculo do desemprego e do emprego informal porque as cifras continuavam aumentando.
Do ponto de vista estrutural, os
problemas sociais se agravaram,
mas não na percepção das pessoas. Chávez colocou em prática
programas de ordem assistencial
que foram muito eficazes. Isso é
inegável. Ele colocou no debate
nacional como uma prioridade a
inclusão de setores que se sentiram excluídos da vida política,
econômica, trabalhista e social de
nosso país durante muitos anos.
Folha - Como funciona o processo
de intimidação de que a sra. falou?
Machado - Há distintos mecanismos. O governo desenhou
múltiplas campanhas de ordem
assistencial que já mencionei, a
que chamou de missões. Nelas foram incorporadas dezenas de milhares de cidadãos -o governo
fala de milhões, mas é difícil saber
quantos são. Em todo caso, o governo consegue localizar cada
uma dessas pessoas, quem são,
onde vivem e como, suas famílias,
e obviamente dá a elas um incentivo econômico periódico para
participar nessas missões. Isso foi
gerando um mecanismo de informação por parte do governo sem
precedentes.
Além disso, no ano passado,
Chávez ordenou ao presidente do
CNE que fossem entregues cópias
de todas as planilhas com os nomes de quem solicitou o plebiscito revogatório presidencial ao deputado Luis Tascón. Ele tomou
toda essa informação, transcreveu numa base de dados eletrônica e a colocou na internet. E todos
os ministérios, as organizações e
universidade públicas, os institutos estatais, começaram a verificar quem havia assinado a favor
do presidente ou não. Há múltiplas denúncias de pessoas que foram despedidas, desempregados
que não conseguiram os empregos que buscavam, pessoas que
perderam os benefícios que recebiam nas missões, por ter assinado contra o presidente.
A lista de Tascón é a página
mais triste da perseguição política
no nosso país porque foi feita de
maneira sistemática, maciça, eficiente e promovida como uma
política de Estado a partir da Presidência da República. Tanto foi
assim que no início deste ano,
Chávez, numa declaração à nação
por TV, disse: "reconheço que a
lista de Tascón já cumpriu seu
propósito, é hora de enterrá-la".
Essa foi a aceitação pública de que
houve perseguição política.
Folha - O que a sra. acha de ter sido recebida por Bush, de ter tamanho trânsito na Casa Branca?
Machado - Creio que, em qualquer país onde eu vá, se o presidente me dá a oportunidade de falar sobre o que está acontecendo
no meu país, sob a minha perspectiva como cidadã, é uma oportunidade extraordinária que não
se pode deixar de aproveitar.
Depois dessa entrevista, houve
maior interesse de setores de outros países em relação à Venezuela e se está ouvindo mais a voz das
organizações como nós, que não
somos partidos políticos, mas que
temos um papel fundamental em
nosso país na defesa da democracia, sobretudo em uma conjuntura em que os partidos políticos estão tão debilitados.
Essa é a minha leitura do encontro com Bush: que foi uma oportunidade extraordinária de dar a
conhecer a uma pessoa muito importante qual é a perspectiva dos
cidadãos venezuelanos, como vemos os principais desafios, riscos
e ameaças, mas também de falar
ao resto do mundo.
Folha - Tendo recebido fundos
dos EUA, qual é a participação ou
influência americana na Súmate?
Machado - Também recebemos
recursos do governo do Canadá e
da Konrad Adenauer, da Alemanha. Ou seja, há outros países que
também nos apoiaram financeiramente. Evidentemente, não
aceitamos recursos de nenhuma
organização ou pessoa que imponha condições sobre o comportamento da nossa organização, seja
estrangeira ou nacional. Prestamos contas apenas aos cidadãos
da Venezuela. Divulgamos publicamente nosso informes financeiros. Nosso orçamento é bem pequeno e, com exceção de umas 20
pessoas, trabalhamos fundamentalmente com voluntários.
Folha - A sra. concorda com acusações de que Chávez desestabiliza
a região por apoiar grupos subversivos em países vizinhos?
Machado - Não me consta que o
governo venezuelano financie
grupos em outros países. São rumores, denúncias feitas dentro e
fora do país de que não temos evidências. Do que sim há provas, e é
muito preocupante apesar de não
ter relação com esse financiamento, é que foram identificados dois
líderes de guerrilhas colombianas, Rodrigo Granda, o chanceler
das Farc, e um senhor a quem
chamam de "El Chigüiro", que receberam nacionalidade venezuelana uma semana antes do plebiscito e que votaram, conforme
consta do registro eleitoral.
Folha - Que papel pode ter o Brasil nesse cenário político?
Machado - O Brasil tem a possibilidade de assumir uma liderança regional extraordinária. Sentimos, no caso concreto da Venezuela, que o governo do Brasil tem
a possibilidade de influenciar e de
pressionar e, como cidadãos venezuelanos, temos esperança de
que isso ocorra de maneira clara,
de maneira contundente. Que os
venezuelanos, e não somente o
governo, tenhamos sinais de que
contamos com o povo brasileiro
na defesa dos nossos direitos.
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