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ARTIGO
Milhões de Bush prolongarão a dor no Iraque
JEFFREY SACHS
O fato de o presidente George
W. Bush ter pedido uma verba de
US$ 75 bilhões para as operações
no Iraque assinala a intenção dos
EUA de manter sua ocupação militar do país por tempo indeterminado. O presidente convidou outros países a também contribuir
com dinheiro e tropas. Eles deveriam recusar o convite enquanto
não for traçado um cronograma
claro para uma retirada rápida
das tropas americanas e uma
transição para um governo iraquiano soberano.
O compromisso assumido pelo
governo Bush no Iraque é enorme
e só faz crescer. Já deixou para trás
as iniciativas oficiais nas áreas de
educação, formação de trabalhadores, atendimento infantil, redução da pobreza internacional e até
mesmo de segurança interna. De
uma só vez Bush comprometeu
quase 1% do PNB [Produto Nacional Bruto, soma dos bens e serviços gerados em qualquer parte
do mundo por meio de recursos
de cidadãos e empresas nacionais
de um determinado país] dos
EUA para o próximo ano, além de
aproximadamente 0,6% do PNB
dos últimos 12 meses.
Em algum momento esse gasto
vai mostrar ser politicamente explosivo nos EUA, mas esse momento ainda não chegou. Uma
parte considerável do público é
fortemente favorável à demonstração de resistência diante do
""inimigo" e, erroneamente, classifica Saddam Hussein como um
dos responsáveis pelos ataques de
11 de setembro de 2001. A administração joga sem dó com as confusões e os temores da população.
No entanto, desde o ponto de
vista da recuperação do Iraque, a
ocupação americana é um beco
sem saída. Mesmo os 140 mil soldados americanos em campo não
conseguem impedir a destruição
gratuita da infra-estrutura, que já
reduziu as exportações iraquianas
de petróleo em mais de 1 milhão
de barris por dia, ou aproximadamente US$ 10 bilhões por ano aos
preços hoje vigentes no mercado
mundial. Esses ataques vão continuar. A ocupação americana é um
pára-raios que atrai uma ampla
gama de grupos violentos, incluindo representantes de linha
dura do partido Baath, nacionalistas xiitas e combatentes da Al
Qaeda recém-chegados ao país.
Oleodutos, torres de eletricidade e
estações de tratamento de água
constituem alvos fáceis. E a mesma coisa pode ser dita dos soldados americanos em patrulha, que
continuam a morrer diariamente,
vítimas de franco-atiradores e
atentados.
Os EUA não têm um plano praticável para chegar a um governo
iraquiano legítimo. Seu principal
defensor xiita acaba de ser assassinado, e outros colaboradores moderados sem dúvida correm o risco de sofrer o mesmo fim. Mesmo
que a maioria dos iraquianos
apoiasse um governo amigável
aos EUA, uma minoria violenta e
de dimensões consideráveis poderia enfraquecer esse governo
por meio do terror e da mobilização do fervor nacionalista.
Esses problemas existiriam
mesmo que o Iraque não fosse
profundamente dividido entre
suas populações xiita, sunita e
curda e os subgrupos divergentes
no interior desses grupos maiores. Em vista da história do engajamento americano na região, o
apoio retórico dos EUA à idéia da
democracia no Iraque quase certamente mostrará ser superficial,
especialmente quando os partidos islâmicos obtiverem sucesso
político, o que certamente vai
acontecer.
Bush e sua equipe acreditam
que a situação vá se estabilizar
passo a passo. Eles expressam
confiança na idéia de que ataques
antiterroristas vão derrotar o inimigo, que a oferta de serviços públicos melhores vai conquistar os
corações e mentes da população e
que a presença militar americana
contínua acabará por ser aceita
como fato consumado.
São as mesmas ilusões nutridas
por Israel na Cisjordânia, pela
Rússia e agora os EUA no Afeganistão e pela América no Vietnã
na geração passada. A estratégia
da ocupação fracassa porque ela é
falha em sua própria base. O ocupante militar é movido por motivações inaceitáveis para parte significativa da população.
A falha fatal da ocupação americana é o fato de que os EUA estão
no Iraque não para promover a
democracia, acelerar o desenvolvimento econômico, localizar armas de destruição em massa ou
combater terroristas, mas para
criar uma base militar e política
de longo prazo com a qual protejam o fluxo de petróleo do Oriente
Médio. Esse fato é amplamente
compreendido em toda a região
do golfo, cuja população já foi alvo de um século de desprezo, primeiro por parte do Império Britânico e, mais tarde, dos EUA. Durante década após década, essas
duas potências se opuseram aos
governos democráticos, derrubaram governos populares e tomaram o partido de governantes corruptos e autocráticos, sempre
atendendo aos interesses do petróleo.
O público americano e britânico
pode esquecer -ou, pelo menos,
ser encorajado a esquecer- que
Saddam Hussein foi seu aliado
nos anos 80, quando combateu o
Irã, apenas para ser redefinido como o Hitler dos anos 90. A população do Iraque e do resto da região não esquece coisas desse tipo.
Com certeza não existe caminho garantido para se chegar à estabilidade do Iraque, muito menos à democracia no país, mas isso não é motivo para que a ocupação norte-americana se prolongue. Quanto mais tempo os EUA
permanecerem no país, mais longa será a agonia econômica e política do Iraque. Um argumento cada vez mais bem-visto nos EUA
diz que, mesmo se a guerra tivesse
sido errada, para começo de conversa, os EUA não podem simplesmente cair fora agora, já que
isso seria visto por seus inimigos
como prova de covardia e irresponsabilidade. Esse argumento
deixa de levar em conta que a continuação da ocupação vai adiar as
soluções reais, não criá-las, e tudo
isso a um custo maciço em termos
de dólares e vidas humanas.
A saída correta seria uma transição, conduzida sob mandato da
ONU, para a soberania iraquiana
no prazo de um ano, com cronograma para a retirada de todas as
tropas americanas e sua substituição parcial por tropas vindas
principalmente de países islâmicos. O Iraque não precisa de assistência externa por mais tempo do
que até o próximo ano: é um país
de renda média que possui a segunda maior reserva petrolífera
do mundo. Ele nem sequer precisa de muito apoio para o próximo
ano, já que seu Orçamento pode
recuperar outros US$ 10 bilhões
ou mais se os oleodutos puderem
funcionar em paz. Mas a economia iraquiana não vai se recuperar, em hipótese alguma, se os
oleodutos continuarem a ser destruídos.
Se os EUA retirarem suas forças
rapidamente, como deveriam fazer, poderão poupar pelo menos
US$ 40 bilhões em custos da ocupação nos próximos 12 meses.
Desse total, mais ou menos US$
10 bilhões poderiam ser dados ao
Orçamento iraquiano. A US$ 400
per capita no Iraque, esses US$ 10
bilhões representariam uma ajuda mais do que suficiente para o
próximo ano, sem a necessidade
de obter verbas de outros países.
É provável que a administração
Bush consiga a aprovação do
Congresso para gastar os US$ 75
bilhões, possivelmente até mesmo sem muita discussão. Mas o
apoio público à proposta parte de
premissas falsas e, por isso mesmo, é provável que acabe por desaparecer. Possivelmente por esse
motivo, a administração não pediu nenhum sacrifício dos eleitores por meio de cortes orçamentários ou aumentos nos impostos
-em lugar disso, simplesmente
ampliou o déficit orçamentário
para espantosos US$ 525 bilhões a
US$ 535 bilhões para o ano fiscal
de 2004.
O governo pode ou não se reeleger nas eleições do próximo ano,
numa disputa que provavelmente
será apertada e extremamente dividida, mas vai enfrentar um caminho traiçoeiro, na medida em
que suas ilusões continuarem a
chocar-se com a realidade dura e
crua. Os chamados pela retirada
vão pouco a pouco ganhar força
nos EUA. Nesse processo, a política americana se tornará cada vez
mais polarizada e instável, e isso
pode até mesmo levar o país a atacar em outra frente. Bush dobrou
sua aposta no Iraque -e o resultado da aposta pode ser uma perda para o mundo inteiro.
JEFFREY SACHS é diretor do Instituto
da Terra da Universidade Columbia.
Tradução de Clara Allain.
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