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São Paulo, domingo, 14 de setembro de 2003

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ARTIGO

Milhões de Bush prolongarão a dor no Iraque

JEFFREY SACHS

O fato de o presidente George W. Bush ter pedido uma verba de US$ 75 bilhões para as operações no Iraque assinala a intenção dos EUA de manter sua ocupação militar do país por tempo indeterminado. O presidente convidou outros países a também contribuir com dinheiro e tropas. Eles deveriam recusar o convite enquanto não for traçado um cronograma claro para uma retirada rápida das tropas americanas e uma transição para um governo iraquiano soberano.
O compromisso assumido pelo governo Bush no Iraque é enorme e só faz crescer. Já deixou para trás as iniciativas oficiais nas áreas de educação, formação de trabalhadores, atendimento infantil, redução da pobreza internacional e até mesmo de segurança interna. De uma só vez Bush comprometeu quase 1% do PNB [Produto Nacional Bruto, soma dos bens e serviços gerados em qualquer parte do mundo por meio de recursos de cidadãos e empresas nacionais de um determinado país] dos EUA para o próximo ano, além de aproximadamente 0,6% do PNB dos últimos 12 meses.
Em algum momento esse gasto vai mostrar ser politicamente explosivo nos EUA, mas esse momento ainda não chegou. Uma parte considerável do público é fortemente favorável à demonstração de resistência diante do ""inimigo" e, erroneamente, classifica Saddam Hussein como um dos responsáveis pelos ataques de 11 de setembro de 2001. A administração joga sem dó com as confusões e os temores da população.
No entanto, desde o ponto de vista da recuperação do Iraque, a ocupação americana é um beco sem saída. Mesmo os 140 mil soldados americanos em campo não conseguem impedir a destruição gratuita da infra-estrutura, que já reduziu as exportações iraquianas de petróleo em mais de 1 milhão de barris por dia, ou aproximadamente US$ 10 bilhões por ano aos preços hoje vigentes no mercado mundial. Esses ataques vão continuar. A ocupação americana é um pára-raios que atrai uma ampla gama de grupos violentos, incluindo representantes de linha dura do partido Baath, nacionalistas xiitas e combatentes da Al Qaeda recém-chegados ao país. Oleodutos, torres de eletricidade e estações de tratamento de água constituem alvos fáceis. E a mesma coisa pode ser dita dos soldados americanos em patrulha, que continuam a morrer diariamente, vítimas de franco-atiradores e atentados.
Os EUA não têm um plano praticável para chegar a um governo iraquiano legítimo. Seu principal defensor xiita acaba de ser assassinado, e outros colaboradores moderados sem dúvida correm o risco de sofrer o mesmo fim. Mesmo que a maioria dos iraquianos apoiasse um governo amigável aos EUA, uma minoria violenta e de dimensões consideráveis poderia enfraquecer esse governo por meio do terror e da mobilização do fervor nacionalista.
Esses problemas existiriam mesmo que o Iraque não fosse profundamente dividido entre suas populações xiita, sunita e curda e os subgrupos divergentes no interior desses grupos maiores. Em vista da história do engajamento americano na região, o apoio retórico dos EUA à idéia da democracia no Iraque quase certamente mostrará ser superficial, especialmente quando os partidos islâmicos obtiverem sucesso político, o que certamente vai acontecer.
Bush e sua equipe acreditam que a situação vá se estabilizar passo a passo. Eles expressam confiança na idéia de que ataques antiterroristas vão derrotar o inimigo, que a oferta de serviços públicos melhores vai conquistar os corações e mentes da população e que a presença militar americana contínua acabará por ser aceita como fato consumado.
São as mesmas ilusões nutridas por Israel na Cisjordânia, pela Rússia e agora os EUA no Afeganistão e pela América no Vietnã na geração passada. A estratégia da ocupação fracassa porque ela é falha em sua própria base. O ocupante militar é movido por motivações inaceitáveis para parte significativa da população.
A falha fatal da ocupação americana é o fato de que os EUA estão no Iraque não para promover a democracia, acelerar o desenvolvimento econômico, localizar armas de destruição em massa ou combater terroristas, mas para criar uma base militar e política de longo prazo com a qual protejam o fluxo de petróleo do Oriente Médio. Esse fato é amplamente compreendido em toda a região do golfo, cuja população já foi alvo de um século de desprezo, primeiro por parte do Império Britânico e, mais tarde, dos EUA. Durante década após década, essas duas potências se opuseram aos governos democráticos, derrubaram governos populares e tomaram o partido de governantes corruptos e autocráticos, sempre atendendo aos interesses do petróleo.
O público americano e britânico pode esquecer -ou, pelo menos, ser encorajado a esquecer- que Saddam Hussein foi seu aliado nos anos 80, quando combateu o Irã, apenas para ser redefinido como o Hitler dos anos 90. A população do Iraque e do resto da região não esquece coisas desse tipo.
Com certeza não existe caminho garantido para se chegar à estabilidade do Iraque, muito menos à democracia no país, mas isso não é motivo para que a ocupação norte-americana se prolongue. Quanto mais tempo os EUA permanecerem no país, mais longa será a agonia econômica e política do Iraque. Um argumento cada vez mais bem-visto nos EUA diz que, mesmo se a guerra tivesse sido errada, para começo de conversa, os EUA não podem simplesmente cair fora agora, já que isso seria visto por seus inimigos como prova de covardia e irresponsabilidade. Esse argumento deixa de levar em conta que a continuação da ocupação vai adiar as soluções reais, não criá-las, e tudo isso a um custo maciço em termos de dólares e vidas humanas.
A saída correta seria uma transição, conduzida sob mandato da ONU, para a soberania iraquiana no prazo de um ano, com cronograma para a retirada de todas as tropas americanas e sua substituição parcial por tropas vindas principalmente de países islâmicos. O Iraque não precisa de assistência externa por mais tempo do que até o próximo ano: é um país de renda média que possui a segunda maior reserva petrolífera do mundo. Ele nem sequer precisa de muito apoio para o próximo ano, já que seu Orçamento pode recuperar outros US$ 10 bilhões ou mais se os oleodutos puderem funcionar em paz. Mas a economia iraquiana não vai se recuperar, em hipótese alguma, se os oleodutos continuarem a ser destruídos.
Se os EUA retirarem suas forças rapidamente, como deveriam fazer, poderão poupar pelo menos US$ 40 bilhões em custos da ocupação nos próximos 12 meses. Desse total, mais ou menos US$ 10 bilhões poderiam ser dados ao Orçamento iraquiano. A US$ 400 per capita no Iraque, esses US$ 10 bilhões representariam uma ajuda mais do que suficiente para o próximo ano, sem a necessidade de obter verbas de outros países.
É provável que a administração Bush consiga a aprovação do Congresso para gastar os US$ 75 bilhões, possivelmente até mesmo sem muita discussão. Mas o apoio público à proposta parte de premissas falsas e, por isso mesmo, é provável que acabe por desaparecer. Possivelmente por esse motivo, a administração não pediu nenhum sacrifício dos eleitores por meio de cortes orçamentários ou aumentos nos impostos -em lugar disso, simplesmente ampliou o déficit orçamentário para espantosos US$ 525 bilhões a US$ 535 bilhões para o ano fiscal de 2004.
O governo pode ou não se reeleger nas eleições do próximo ano, numa disputa que provavelmente será apertada e extremamente dividida, mas vai enfrentar um caminho traiçoeiro, na medida em que suas ilusões continuarem a chocar-se com a realidade dura e crua. Os chamados pela retirada vão pouco a pouco ganhar força nos EUA. Nesse processo, a política americana se tornará cada vez mais polarizada e instável, e isso pode até mesmo levar o país a atacar em outra frente. Bush dobrou sua aposta no Iraque -e o resultado da aposta pode ser uma perda para o mundo inteiro.


JEFFREY SACHS é diretor do Instituto da Terra da Universidade Columbia.

Tradução de Clara Allain.


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