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Reconstrução carece de lógica política, diz Védrine
MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO
Se pensam que conseguirão resolver os problemas atuais do Iraque com o aumento do número
de soldados que estão no país, os
americanos estão totalmente enganados. Trata-se de uma ilusão
perigosa, pois é necessário que
eles privilegiem a esfera política.
Se isso ocorrer, também será
preciso que os Estados Unidos
aceitem os vários ângulos da democracia, já que, no Iraque, poderá haver um governo que não
agrade aos americanos.
A análise é de Hubert Védrine,
nascido em 1947, ex-chanceler da
França (1997-2002) e autor de
"Les Cartes de la France à l'heure
de la Mondialisation" (as cartas
da França na hora da globalização). Leia a seguir trechos de sua
entrevista, por telefone, à Folha.
Folha - O sr. era contrário à guerra e pensava que era possível evitá-la, utilizando a diplomacia. O que
poderia ser feito agora para evitar
os graves problemas que a reconstrução iraquiana tem encontrado?
Hubert Védrine - Quando ainda
era ministro, levantei o problema
do simplismo do modo de pensar
da atual administração americana. Afinal, eu já pensava que suas
análises simplistas não eram adequadas ao mundo atual.
Falo das análises do conjunto
que forma essa administração e
de suas concepções sem profundidade. Assim, sempre pensei que
as políticas que as autoridades
americanas aplicavam fossem
simplistas demais para levar em
consideração a complexidade
atual das relações internacionais.
Isso em relação a quase todos os
temas importantes da cena internacional: o Oriente Médio, o Iraque, o terrorismo etc. Agora temos a prova de que esse modo de
pensar não funciona. Com isso, é
urgente que busquemos uma lógica política no Iraque.
Se pensam que conseguirão resolver os problemas atuais do Iraque com o aumento do número
de soldados que estão no país, os
americanos estão totalmente enganados. Trata-se de uma ilusão
perigosa, pois é necessário que
eles privilegiem a esfera política.
Se isso ocorrer, também será
preciso que os EUA aceitem os vários ângulos da democracia, já
que, no Iraque, poderá haver um
governo que não agrade aos americanos. Boa parte de sua população é xiita, e Washington tem de
admitir que os xiitas poderão chegar ao poder num ambiente democrático. Pode, portanto, haver
uma administração antiamericana no poder em Bagdá.
Isso faz parte da democracia.
Não podemos ditar nossas regras
a ela. Há, logicamente, um risco
político nessa opção pela democracia. Contudo acredito que os
EUA devam aceitar esse risco político. Penso que os americanos
começam a evoluir nesse sentido.
Folha - Washington já admite ceder parte do poder político no Iraque à ONU em troca de ajuda militar e financeira na reconstrução.
Como o sr. vê a nova iniciativa dos
EUA no Conselho de Segurança?
Védrine - No que se refere à nova
resolução do Conselho de Segurança da ONU, penso que os americanos fizeram realmente algumas concessões e que, em breve,
haverá um acordo final sobre o
texto, mesmo que alguns países
mantenham certa reserva por
pensar que ele ainda não é o ideal.
Ninguém quer que a "política
do pior" acabe se
instalando na
ONU. Todas as
partes envolvidas
nas negociações
farão o possível
para chegar a um
consenso. A nova
resolução só vai,
todavia, aumentar
um pouco o papel
da ONU. Os EUA
manterão o poder
essencial.
No que concerne ao papel da
ONU, não devemos ser utópicos
nem pensar que a
ONU poderia resolver a situação
iraquiana facilmente. Mesmo
num caso hipotético em que os EUA concordassem em dar todo o poder à ONU,
ela não seria capaz de resolver a
crise atual rapidamente. Não podemos confundir o formalismo
multilateral com a terrível realidade de certas situações.
Ademais, não tenho certeza de
que a burocracia da ONU queira
ter um papel mais importante no
Iraque, sobretudo após o grave
atentado que custou a vida de tantas pessoas, incluindo [Sérgio]
Vieira de Mello, que era um homem fantástico. É, portanto, necessário voltar a uma lógica política e dar um papel verdadeiro a
um governo iraquiano. Este deveria pedir à ONU
que monitorasse o
processo político
durante um ano
ou dois.
Folha - O sr. não
vê a Otan (aliança
militar ocidental)
no Iraque?
Védrine - Creio
que seja absurdo
utilizar a Otan indiscriminadamente. Desde o
fim da URSS, ninguém sabe direito
a que serve a Otan,
e não faltam idéias
bizarras de usá-la
aqui ou lá, fora de
sua zona de atuação original. A
propósito, foi o Pentágono que
começou a demonstrar desinteresse pela Otan, não a Europa.
Folha - Qual é sua análise sobre a
iniciativa da França, da Alemanha,
da Bélgica e de Luxemburgo de
criar uma força militar européia?
Védrine - No mundo ideal, seria
necessário criar um sistema de
defesa europeu que tivesse uma
aliança com os EUA, mas mantivesse sua autonomia. Entretanto
não acredito que essa iniciativa
venha a ser bem-sucedida porque
não é possível haver um projeto
de defesa europeu sem o Reino
Unido. Este e a França são os únicos países da União Européia que
dispõem de um aparato militar
considerável. O ideal seria usá-los
em conjunto. Há alguns anos, numa reunião franco-britânica em
Saint-Malo [noroeste da França],
houve um acordo político para
tentar avançar nessa área. Seria
bom que retomássemos o espírito
de Saint-Malo.
Folha - Na crise diplomática que
precedeu a Guerra do Iraque, a
França e os EUA estavam de lados
opostos. Qual será o futuro das relações franco-americanas?
Védrine - A curto prazo, haverá
um esforço de reaproximação das
duas partes. A médio e longo prazos, as coisas voltarão ao ponto de
partida. Nas relações franco-americanas, desde os presidentes
[Franklin] Roosevelt e [Charles]
De Gaulle, na metade do século
passado, há uma mistura de amizade, na qual os dois parceiros são
muito unidos -sobretudo nos
momentos difíceis-, com um
desacordo sobre o modo de ver o
mundo e sobre as políticas aplicadas na esfera global.
É claro que a política externa da
administração de George W.
Bush é tão extrema e tão provocadora que vemos sobretudo as diferenças entre os dois países. Todavia, se observarmos o período
em que [Bill] Clinton esteve na
Presidência dos EUA, nos anos
90, a cooperação entre Paris e
Washington era bastante forte.
Folha - Então, se Bush conseguir a
reeleição em 2004, haverá mais
quatro anos de dificuldades?
Védrine - Haverá sempre acordos e diferenças entre os EUA e a
França. Porém, se a equipe de
Bush permanecer no poder e
mantiver a linha política que temos visto até agora, haverá mais
momentos de desacordo que de
harmonia. Mas isso não é grave.
Folha - A França ganhou ou perdeu com a crise diplomática que
precedeu a guerra?
Védrine - A França ganhou prestígio graças à sua oposição à guerra, contudo não teve sua esfera de
influência aumentada. Paris não é
mais influente hoje no que se refere aos grandes debates mundiais.
A França conseguiu ajudar a evitar que a ONU desse sua anuência
formal à guerra, no entanto não
conseguiu evitar que Washington
decidisse atacar o Iraque. Assim,
ganhar prestígio não significa ganhar influência.
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