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São Paulo, domingo, 14 de setembro de 2003

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Reconstrução carece de lógica política, diz Védrine

MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO

Se pensam que conseguirão resolver os problemas atuais do Iraque com o aumento do número de soldados que estão no país, os americanos estão totalmente enganados. Trata-se de uma ilusão perigosa, pois é necessário que eles privilegiem a esfera política.
Se isso ocorrer, também será preciso que os Estados Unidos aceitem os vários ângulos da democracia, já que, no Iraque, poderá haver um governo que não agrade aos americanos.
A análise é de Hubert Védrine, nascido em 1947, ex-chanceler da França (1997-2002) e autor de "Les Cartes de la France à l'heure de la Mondialisation" (as cartas da França na hora da globalização). Leia a seguir trechos de sua entrevista, por telefone, à Folha.

Folha - O sr. era contrário à guerra e pensava que era possível evitá-la, utilizando a diplomacia. O que poderia ser feito agora para evitar os graves problemas que a reconstrução iraquiana tem encontrado?
Hubert Védrine -
Quando ainda era ministro, levantei o problema do simplismo do modo de pensar da atual administração americana. Afinal, eu já pensava que suas análises simplistas não eram adequadas ao mundo atual.
Falo das análises do conjunto que forma essa administração e de suas concepções sem profundidade. Assim, sempre pensei que as políticas que as autoridades americanas aplicavam fossem simplistas demais para levar em consideração a complexidade atual das relações internacionais.
Isso em relação a quase todos os temas importantes da cena internacional: o Oriente Médio, o Iraque, o terrorismo etc. Agora temos a prova de que esse modo de pensar não funciona. Com isso, é urgente que busquemos uma lógica política no Iraque.
Se pensam que conseguirão resolver os problemas atuais do Iraque com o aumento do número de soldados que estão no país, os americanos estão totalmente enganados. Trata-se de uma ilusão perigosa, pois é necessário que eles privilegiem a esfera política.
Se isso ocorrer, também será preciso que os EUA aceitem os vários ângulos da democracia, já que, no Iraque, poderá haver um governo que não agrade aos americanos. Boa parte de sua população é xiita, e Washington tem de admitir que os xiitas poderão chegar ao poder num ambiente democrático. Pode, portanto, haver uma administração antiamericana no poder em Bagdá.
Isso faz parte da democracia. Não podemos ditar nossas regras a ela. Há, logicamente, um risco político nessa opção pela democracia. Contudo acredito que os EUA devam aceitar esse risco político. Penso que os americanos começam a evoluir nesse sentido.

Folha - Washington já admite ceder parte do poder político no Iraque à ONU em troca de ajuda militar e financeira na reconstrução. Como o sr. vê a nova iniciativa dos EUA no Conselho de Segurança?
Védrine -
No que se refere à nova resolução do Conselho de Segurança da ONU, penso que os americanos fizeram realmente algumas concessões e que, em breve, haverá um acordo final sobre o texto, mesmo que alguns países mantenham certa reserva por pensar que ele ainda não é o ideal.
Ninguém quer que a "política do pior" acabe se instalando na ONU. Todas as partes envolvidas nas negociações farão o possível para chegar a um consenso. A nova resolução só vai, todavia, aumentar um pouco o papel da ONU. Os EUA manterão o poder essencial.
No que concerne ao papel da ONU, não devemos ser utópicos nem pensar que a ONU poderia resolver a situação iraquiana facilmente. Mesmo num caso hipotético em que os EUA concordassem em dar todo o poder à ONU, ela não seria capaz de resolver a crise atual rapidamente. Não podemos confundir o formalismo multilateral com a terrível realidade de certas situações.
Ademais, não tenho certeza de que a burocracia da ONU queira ter um papel mais importante no Iraque, sobretudo após o grave atentado que custou a vida de tantas pessoas, incluindo [Sérgio] Vieira de Mello, que era um homem fantástico. É, portanto, necessário voltar a uma lógica política e dar um papel verdadeiro a um governo iraquiano. Este deveria pedir à ONU que monitorasse o processo político durante um ano ou dois.

Folha - O sr. não vê a Otan (aliança militar ocidental) no Iraque?
Védrine -
Creio que seja absurdo utilizar a Otan indiscriminadamente. Desde o fim da URSS, ninguém sabe direito a que serve a Otan, e não faltam idéias bizarras de usá-la aqui ou lá, fora de sua zona de atuação original. A propósito, foi o Pentágono que começou a demonstrar desinteresse pela Otan, não a Europa.

Folha - Qual é sua análise sobre a iniciativa da França, da Alemanha, da Bélgica e de Luxemburgo de criar uma força militar européia?
Védrine -
No mundo ideal, seria necessário criar um sistema de defesa europeu que tivesse uma aliança com os EUA, mas mantivesse sua autonomia. Entretanto não acredito que essa iniciativa venha a ser bem-sucedida porque não é possível haver um projeto de defesa europeu sem o Reino Unido. Este e a França são os únicos países da União Européia que dispõem de um aparato militar considerável. O ideal seria usá-los em conjunto. Há alguns anos, numa reunião franco-britânica em Saint-Malo [noroeste da França], houve um acordo político para tentar avançar nessa área. Seria bom que retomássemos o espírito de Saint-Malo.

Folha - Na crise diplomática que precedeu a Guerra do Iraque, a França e os EUA estavam de lados opostos. Qual será o futuro das relações franco-americanas?
Védrine -
A curto prazo, haverá um esforço de reaproximação das duas partes. A médio e longo prazos, as coisas voltarão ao ponto de partida. Nas relações franco-americanas, desde os presidentes [Franklin] Roosevelt e [Charles] De Gaulle, na metade do século passado, há uma mistura de amizade, na qual os dois parceiros são muito unidos -sobretudo nos momentos difíceis-, com um desacordo sobre o modo de ver o mundo e sobre as políticas aplicadas na esfera global.
É claro que a política externa da administração de George W. Bush é tão extrema e tão provocadora que vemos sobretudo as diferenças entre os dois países. Todavia, se observarmos o período em que [Bill] Clinton esteve na Presidência dos EUA, nos anos 90, a cooperação entre Paris e Washington era bastante forte.

Folha - Então, se Bush conseguir a reeleição em 2004, haverá mais quatro anos de dificuldades?
Védrine -
Haverá sempre acordos e diferenças entre os EUA e a França. Porém, se a equipe de Bush permanecer no poder e mantiver a linha política que temos visto até agora, haverá mais momentos de desacordo que de harmonia. Mas isso não é grave.

Folha - A França ganhou ou perdeu com a crise diplomática que precedeu a guerra?
Védrine -
A França ganhou prestígio graças à sua oposição à guerra, contudo não teve sua esfera de influência aumentada. Paris não é mais influente hoje no que se refere aos grandes debates mundiais. A França conseguiu ajudar a evitar que a ONU desse sua anuência formal à guerra, no entanto não conseguiu evitar que Washington decidisse atacar o Iraque. Assim, ganhar prestígio não significa ganhar influência.



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