São Paulo, terça-feira, 14 de setembro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

População depende de alimentos doados pelo governo

ERIK ECKHOLM
DO "NEW YORK TIMES", EM BAGDÁ

O Iraque pode ser dilacerado por divisões étnicas e religiosas, mas existe um elemento que ainda une sua população, desde os guerreiros sagrados do Triângulo Sunita até os partidários de classe média do governo, passando pelos xiitas insatisfeitos do sul. O que toda família iraquiana recebe, independentemente de sua renda e de quem domina as ruas na área em que ela vive, é a doação mensal de alimentos gratuitos feita pelo governo central.
Quase um ano e meio depois de as forças americanas terem demolido o governo de Saddam Hussein e prometido criar uma democracia próspera, o Iraque continua, de certa forma, sendo o maior Estado do Bem-Estar Social do mundo.


"Se pararem de dar as cestas, os preços dos alimentos vão subir. Haverá guerra nas ruas. Não deixe que acabem com o programa, senão muita gente vai morrer"


O governo de Saddam começou, em 1991, a entregar à população cestas básicas por meio de lojas de bairro. Era a época em que o país enfrentava sanções internacionais. O programa continua inalterado mesmo em cidades como Fallujah, que está sob o controle de militantes islâmicos (onde todos os outros serviços governamentais já foram cortados).
A ração mensal de farinha de trigo, arroz, feijão e outros produtos vale cerca de US$ 15 por pessoa. Para a maioria pobre da população, fustigada por anos de sanções, guerra e colapso econômico, a cesta básica constitui uma rede de segurança. Mesmo entre os iraquianos que têm dinheiro, as cestas básicas passaram a ser vistas como algo a que todos têm direito, e a população quer ver ampliada sua lista de produtos.
"Sem a cesta, nós não podemos viver", disse a idosa Hassina Hasoon, que buscava sacos de farinha de trigo no bairro pobre de Washash, na região central de Bagdá. Ela contou que, em sua família de oito pessoas, apenas um filho consegue encontrar trabalho ocasional. "Dependemos totalmente da cesta para nossa sobrevivência. Gostaríamos que acrescentassem a ela carne e frango."
Maher Ali Oraibi, 45, que estava no mesmo local, disse: "Se pararem de dar as cestas básicas, os preços dos alimentos vão subir até a estratosfera. Haverá guerra nas ruas. Não deixe que acabem com o programa, senão muita gente vai morrer".
O sistema de entrega de rações alimentares tem custos enormes, diretos e indiretos. A importação e a distribuição dos alimentos consome US$ 3,8 bilhões, cerca de um quinto do Orçamento do Iraque. Fomenta a corrupção burocrática, gera uma cultura de dependência e, pelo fato de funcionar quase inteiramente com produtos importados, mina a agricultura e a indústria nacionais.
Outro exemplo de subsídio caro é o da gasolina, vendida no Iraque por menos de US$ 0,03 o litro. Outros combustíveis também são baratos. O custo de tudo isso para o governo chega a US$ 5 bilhões em receita perdida. O baixo preço do combustível incentiva o contrabando e atrapalha o desenvolvimento necessário da indústria petroquímica.
Conselheiros ocidentais, o FMI e os principais economistas do Iraque concordam que os enormes subsídios praticados no país vão prejudicar gravemente os planos de diversificar e abrir a economia. Mas eles também sabem quais seriam as conseqüências prováveis nas ruas se os subsídios fossem cortados no futuro próximo. Por ora, as reformas econômicas básicas são reféns da fragilidade política do Iraque e do desemprego maciço no país.
Estimativas da ONU indicam que 60% dos iraquianos sobrevivem em boa parte das rações de farinha, arroz, feijão, óleo de cozinha, leite em pó, açúcar e chá preto fornecidas pelo governo. A maioria das famílias restantes também recebe as cestas básicas, sendo que muitas vendem os alimentos de que não precisam.
"O sistema de distribuição de alimentos é nossa mais importante rede de segurança social", disse o economista Fakhri Aldin Rashan, subsecretário do Ministério do Comércio, que administra o programa de cestas básicas.
Temeroso de qualquer reação contrária num país onde grandes setores da população já se encontram em revolta aberta, o governo prometeu manter o programa pelo menos até o final de 2005. A proposta, de acordo com Rashan, é começar pouco a pouco a reduzir as cestas dadas aos ricos, e, com o tempo, passar a entregá-las apenas aos setores mais carentes.
Conselheiros ocidentais defendem a mudança para um sistema de pagamentos em dinheiro, em valores mensais que poderiam variar de US$ 15 a US$ 20 per capita. Com isso, as pessoas poderiam comprar o que quisessem, o que seria um estímulo à agricultura, ao comércio e ao desenvolvimento. Mas, segundo Rashan, a desconfiança e o medo são grandes.
Um argumento prático contra a mudança para pagamentos em dinheiro, disse Rashan, é que o dinheiro tenderia a ficar com os homens -chefes de família-, que poderiam gastá-lo sozinhos ou até mesmo conseguir segundas esposas, deixando algumas mulheres e crianças à míngua.
Ao mesmo tempo em que as pessoas não querem abrir mão da segurança da comida gratuita, muitas reclamam da má qualidade dos alimentos recebidos e da distribuição inconstante. Dizem que a farinha muitas vezes chega quase estragada, que o óleo tem cheiro ruim e que a corrupção envolvida no processo é grave.
"As autoridades que administram o programa são ladras", declarou Saleh, o dono de uma mercearia. "Elas importam alimentos de boa qualidade, os vendem e dão produtos de má qualidade à população." Ele disse que a taxa que recebe por distribuir os alimentos é tão pequena que quase não vale a pena fazer a distribuição. Mas, pelo menos, a presença das cestas básicas em sua loja atrai consumidores -que compram cigarros e refrigerantes.
O ciclo de dependência também inclui muitos dos distribuidores, como Maher Yusef. Ele faz e vende pão e distribui farinha para 2.800 pessoas no bairro de Washash, onde o lixo se espalha pelas ruas ladeadas de barracas vendendo autopeças enferrujadas.
Com 45 anos e pai de quatro filhos, Yusef disse que recebe cerca de US$ 19 mensais como distribuidor. Mas ele recorre a estratégias diversas para ganhar alguns dólares a mais. Normalmente, recebe cem sacos extras de farinha, que vende ou usa para fazer pão. E compra farinha de pessoas que receberam mais do que precisavam e a revende no mercado.
Seus clientes mais abastados lhe vendem a farinha de baixa qualidade e compram farinha melhor. Os clientes menos afortunados lhe vendem produtos da cesta básica para poder pagar um médico. "Não é o suficiente para viver. O governo deveria pagar um salário aos distribuidores", afirma.

Tradução de Clara Allain


Texto Anterior: Iraque sob tutela: Bush quer tirar dinheiro de reconstrução
Próximo Texto: Panorâmica - Oriente Médio: Israel mata três membros das Brigadas de Al Aqsa
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.