UOL


São Paulo, domingo, 14 de dezembro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

AFEGANISTÃO

Alerta sobre possíveis ataques e divergências profundas marcam início da assembléia que discutirá a Constituição

Loya Jirga começa sob a sombra da tensão


"Os princípios islâmicos devem estar na base de todas as leis no Afeganistão", diz um delegado pashtu


VICTORIA BURNETT
DO "FINANCIAL TIMES", EM CABUL

Vindos de todas as partes do Afeganistão, desde os desertos do oeste do país até os picos nevados do norte do Badakshão, centenas de delegados estão reunidos neste final de semana na capital afegã, Cabul, para discutir a carta que vai mapear o futuro democrático do país no pós-guerra.
Numa grande tenda drapejada nas cores do Afeganistão -preto, verde e vermelho-, 500 delegados de 32 Províncias vão debater, modificar e ratificar o esboço de Constituição.
A Loya Jirga, ou grande conselho, vai determinar o papel da religião e os direitos das mulheres na sociedade afegã, a relação entre Cabul e as Províncias e o grau de partilha do poder entre o presidente e a Assembléia Legislativa.
O novo adiamento do início da Loya Jirga -ela deveria ter começado na quarta-feira, depois no sábado e agora a previsão era que começaria hoje- foi atribuído publicamente a razões logísticas. Mas alguns funcionários ocidentais afirmam que se deveu a negociações de último minuto entre representantes do governo e delegados de diferentes facções afegãs, visando resolver questões potencialmente divisivas antes do início do conselho.

Alerta máximo
A violência rebelde implacável nas Províncias, além de sinais, de acordo com autoridades americanas, de planos dos insurgentes para atacar a Loya Jirga, mantiveram o estado de alerta máximo em Cabul.
Soldados estavam a postos sobre tanques para montar guarda nas ruas que cercam a Politécnica de Cabul, de construção russa, que abriga o conselho. Os delegados serpenteavam entre muros de sacos de areia para passar por barreiras fortemente vigiadas.
Do lado de dentro da tenda, a questão com maior potencial de dividir os delegados será a da relação entre os princípios islâmicos, o direito internacional e os ideais democráticos, disseram observadores afegãos e ocidentais.
O esboço de Constituição divulgado há seis semanas diz que nenhuma lei deve contrariar o código islâmico e deixa a última palavra em casos de interpretação das leis a cargo da Suprema Corte -o que, segundo comentaristas liberais e representantes ocidentais, confere ao conservador Judiciário afegão uma margem muito grande de manobra para definir a lei islâmica.
Entretanto, em lugar de tentar refrear a influência da lei corânica, ou sharia, vários delegados entrevistados em Cabul nesta semana disseram que vão defender o reforço de sua primazia.

Papel do islã
De acordo com Nasir Shafiq, delegado de etnia pashtu vindo da diáspora afegã em Peshawar, no Paquistão, "o papel do islã não foi suficientemente bem definido no esboço atual". "Os princípios islâmicos devem estar na base de todas as leis no Afeganistão", afirmou Shafiq.
A outra questão que deve elevar a temperatura política na Loya Jirga é a estrutura de poder. Depois de a proposta original de contar com um primeiro-ministro ter sido descartada a pedido do palácio presidencial, o esboço de Constituição passou a conferir ao presidente fortes poderes sobre o Legislativo.
Mas o esboço vem sendo criticado por afegãos e alguns diplomatas ocidentais, que o vêem como expressão de preocupações políticas imediatas, em lugar de algo que procura deitar as bases de um sistema de governo forte, de longo prazo.
Os defensores do presidente Hamid Karzai nos Estados Unidos estão ansiosos por vê-lo reeleito e temem que seus poderes já limitados sejam ainda mais ameaçados se for aprovada a criação do cargo de primeiro-ministro.
"O esboço de Constituição foi feito sob medida para Hamid Karzai. Essa concentração toda sobre ele é perigosa", avisou um diplomata ocidental.
Na semana passada, o Nahzat Milli Islami Afeganistão -um grupo que se separou do antigo movimento de resistência da Aliança do Norte, coligado aos EUA na Guerra do Afeganistão- divulgou um folheto pedindo a criação do cargo de primeiro-ministro, função essa que a Aliança do Norte cobiçava para um de seus dirigentes.
A pressão nesse sentido será encabeçada pelo líder da Aliança, o ex-presidente e atual rival político de Karzai, Burhanuddin Rabbani, que participa da Loya Jirga. Karzai disse nesta semana que, se o grande conselho optar por um sistema com primeiro-ministro, ele não deverá ser candidato à reeleição no próximo ano.
"Nos países em que não existem instituições fortes, onde os resquícios de conflito continuam presentes, precisa-se de um sistema que possua um poder central, não diversos centros", disse ele.

Perspectiva desanimadora
A perspectiva de 500 delegados dentro de uma tenda enorme esforçando-se para alcançar um consenso em torno de questões tão divisivas é desanimadora, disseram representantes afegãos e ocidentais.
Os delegados vão passar um dia fazendo um debate geral e depois se dividirão em dez grupos de 50 para analisar os 160 artigos do esboço de Constituição.
Suas sugestões serão apresentadas a uma pequena comissão, ainda não indicada, que, então, as compilará em preparação para o debate final.
O governo e os delegados atribuíram grande importância à escolha do presidente da Loya Jirga, e os palpites indicam que será o ex-presidente moderado Sebghatullah Mojaddedi. A ele será confiado o encargo de incentivar a discussão sem permitir que ela degenere numa luta livre política.
Karzai afirmou na quarta-feira que espera que a grande reunião chegue ao fim em dez dias. Sua declaração alimentou desconfianças ocidentais de que o governo esteja pretendendo conduzir a reunião de modo a impedir que os delegados promovam modificações significativas no esboço de Constituição.
"Quanto menos tempo durar o grande conselho, melhor", disse Karzai. ""Cada dia custa US$ 50 mil."

Tradução de Clara Allain

Texto Anterior: Ásia: EUA falam de terror e China faz negócios
Próximo Texto: Panorâmica - Peru: Toledo surpreende e pede renúncia do gabinete
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.