São Paulo, sábado, 15 de janeiro de 2011

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros

CLÓVIS ROSSI

Um certo ar de Portugal-1974


Revolta popular triunfa na Tunísia, impulsionada por jovens sem horizontes e cansados da cleptocracia


VER OS VÍDEOS das manifestações de ontem na Tunísia era como voltar 37 anos no tempo, até a chamada "Revolução dos Cravos", que derrubou a ditadura salazarista em Portugal, então sob comando de Marcello Caetano.
Parecia, de longe, o mesmo congraçamento público/Forças Armadas, que marcou a mudança em Portugal. Mas com um importantíssima diferença: em Portugal, quem começou o movimento revolucionário foram as Forças Armadas, saturadas das guerras nas colônias africanas.
A população foi atrás depois, enfiando cravos na ponta dos fuzis ou na boca dos canhões dos tanques.
Na Tunísia, ao contrário, foi a população que começou os protestos, cansada da ditadura de 24 anos, mas cansada acima de tudo da falta de horizontes.
O Exército ontem decidiu finalmente que não ia mais disparar sobre os manifestantes para defender a cleptocracia do ditador Ben Ali.
Aliás, dá até para dizer que a revolta na Tunísia é o primeiro grande produto dos vazamentos do WikiLeaks via mídia convencional: telegramas do Departamento de Estado americano apontavam para um impressionante grau de corrupção da família do presidente, em especial de sua mulher.
Não que os tunisianos já não soubessem antes. É sintomático que o jornal "El País" abra reportagem de ontem sobre as razões da crise com a seguinte frase de Rim Ben Smail, catedrática de Questões Empresariais da Universidade de Túnis, a capital tunisiana:
"Quando você compra um computador, um celular, um automóvel ou a pasta de dentes, está comprando da família [Trabelsi]", a família da mulher do presidente.
Uma coisa, no entanto, é o rumor surdo da rua, o boca-a-boca. Outra, mais sólida, é a comprovação do rumor exatamente pela diplomacia norte-americana, que ajudava a sustentar a ditadura a pretexto de que, se ela caísse, viria o extremismo islâmico.
Pode até ser que venha, mas não foi ele o motor dos protestos. Foram espontâneos, nascidos da rua mesmo. O incidente detonador, de resto, é eloquente: a imolação de Mohamed Bouaziz, formado na universidade, mas desempregado, 26 anos, que não aguentou ver até seu subemprego (uma barraca de venda de frutas) apreendida pela polícia. Morreu no hospital.
A situação de Bouaziz é, de certo modo, a ilustração da desesperança: 60% dos jovens formados em universidades não encontram trabalho, porcentagem que duplica os já insuportáveis 30% de desemprego entre os jovens em geral.
Que não são nem os movimentos islamistas nem a oposição convencional, manietada pelo regime, que se encontram no comando do movimento, prova-o o fato de que não subiu ao poder algum Khomeini, ao contrário do que ocorreu no Irã, ou algum dirigente da oposição. Assumiu, pelo menos interinamente, o premiê Mohammed Ghanuchi.
Abre-se de todo modo um período elétrico não apenas na Tunísia mas em todo o Norte da África, em que regimes autoritários, desemprego dos jovens e desesperança são características comuns.


Texto Anterior: EUA e França reagem à crise e Brasil alerta turistas no país
Próximo Texto: Protesto deixa brasileiros bloqueados no sul do Chile
Índice | Comunicar Erros



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.