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São Paulo, terça-feira, 15 de abril de 2003

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RELIGIÃO

Para pesquisador indiano, partidos religiosos não devem ser reprimidos para haver mudança

Islã precisa de democracia, diz analista

CLAUDIA ANTUNES
DA SUCURSAL DO RIO

Doutor em relações internacionais pela Universidade de Georgetown, em Washington, e diretor do programa de estudos internacionais do Adrian College, no Estado de Michigan, o indiano Muqtedar Khan integra a comunidade muçulmana nos EUA, onde vive há 11 anos, e participa do conselho do Centro de Estudos do Islã e da Democracia.
Crítico da guerra contra o Iraque, que considera "ilegal e ilegítima", Khan, 37, acredita que o nacionalismo árabe está morto e que o pan-islamismo é a nova expressão do sentimento anticolonial no Oriente Médio. Em entrevista à Folha, ele diz que não haverá democracia na região enquanto os partidos religiosos forem reprimidos. "Os muçulmanos precisam passar pela experiência de levar os movimentos islâmicos ao poder democraticamente", disse.
 

Folha - Boa parte dos iraquianos parece ter comemorado a queda de Saddam. Como o senhor interpreta isso?
Muqtedar Khan -
Saddam era um ditador e os iraquianos gostariam de ter se livrado dele há muito tempo. A maioria dos muçulmanos vem pedindo mudanças de regime no Oriente Médio há décadas. Mas a questão-chave, de uma perspectiva geopolítica, é se a guerra ilegal e ilegítima de Bush e sua estratégica de ataques preventivos estão sendo legitimadas pela reação dos iraquianos.

Folha - Estão?
Khan -
Não. Bush não atacou o Iraque para libertar o povo iraquiano, mas para encontrar armas de destruição em massa. Mesmo que encontrem alguma coisa agora, o fato é que Saddam Hussein, mesmo na perspectiva de ser derrotado, não usou armas químicas. Bush terá que responder por isso diante da opinião pública americana e internacional.

Folha - A opinião pública americana vai cobrar isso?
Khan -
Mais de 55% dos americanos acreditam que Saddam foi responsável pelos atentados de 11 de setembro. O problema para Bush agora não vem da maioria da população, mas do fato de que alguns líderes democratas terão como resgatar seu caráter e perguntar: onde estão as armas de que vocês falavam? Além disso, existe uma disputa interna no Partido Republicano, entre os conservadores tradicionais que eram próximos de Bush pai e os novos caubóis, que ganharam um voto de confiança e não fizeram jus a ele. Para os EUA, a questão agora é ganhar a paz. Se a ONU não tiver papel preponderante no pós-guerra, serão vistos como um poder colonial. Tony Blair, ao pretender retomar a questão do Estado palestino, tenta impedir que o governo Bush comece a pensar na próxima guerra.

Folha - O senhor acredita que esse será o próximo passo?
Khan -
Bush não será capaz de demonstrar internamente a necessidade de atacar a Síria ou o Irã. A campanha presidencial começa e será complicada para ele, por mais que agora desfrute do aplauso da população. O governo tem um déficit de credibilidade. Não achou Bin Laden, não achou o mulá Omar, não achou sequer a pessoa que estava mandando cartas com antraz. A única coisa que fez foi baixar impostos barbaramente no mesmo ano em que entrou em uma guerra.

Folha - Na sua opinião, o nacionalismo árabe está vivo?
Khan -
Não. Hoje ele é representado por regimes decrépitos como o de Mubarak no Egito e o de Assad na Síria. O autoritarismo e a intolerância no mundo árabe vêm dos regimes seculares. Os movimentos islâmicos foram mantidos fora do poder pela repressão e nunca tiveram a oportunidade de falhar ou se legitimar.

Folha - Em sua origem, o nacionalismo árabe defendia a soberania, a República, alguma separação entre religião e Estado. Qual seria a alternativa?
Khan -
Há outro modo de examinar o nacionalismo árabe, como instrumento do colonialismo inglês. O que chamamos de "revolta árabe" durante a Primeira Guerra Mundial foi instigada pela Grã-Bretanha, para abrir uma nova frente contra o império otomano. O nacionalismo é essencialmente uma idéia britânica para minar a idéia pan-islâmica do califado. Os partidos religiosos, por sua vez, assumem que o Islã vai resolver todos os problemas e não têm nem uma boa análise de quais sejam os problemas do Oriente Médio nem políticas específicas para resolvê-los.

Folha - Se houvesse eleições livres nos países árabes, eles seriam vitoriosos?
Khan -
Os partidos religiosos chegariam ao poder não por causa de seu programa, mas como uma expressão do antiamericanismo. O que se chama de fundamentalismo islâmico é outra expressão do sentimento anticolonial. Os muçulmanos sentem que se livraram apenas fisicamente do colonialismo. Agora, pensam que têm que resgatar sua cultura e sua identidade. Quando os partidos religiosos dizem que "só Deus é soberano" num Estado islâmico, estão dizendo "a América não tem soberania sobre nós".

Folha - O senhor acredita que esse partidos devem ter a oportunidade de governar?
Khan -
Claro. A secularização, a modernização e a democratização da Europa aconteceram após cem anos de guerras religiosas. Esperamos que isso não aconteça no Oriente Médio, mas os muçulmanos precisam passar pela experiência de levar movimentos islâmicos ao poder democraticamente. O filósofo iraniano Karim Soroush, assessor do presidente Mohamed Khatami, disse recentemente que o que houve em 1979 foi uma rejeição em massa da ocidentalização. Não foi uma revolução islâmica, mas antiocidental, e foi na verdade liderada por esquerdistas e comunistas. Para ele, a atual revolução no Irã, por liberdade e democracia, é a verdadeira revolução islâmica. O Irã está amadurecendo há 20 anos. Talvez devêssemos dar ao Oriente Médio 20 anos de experiência com a solução islâmica. Quem sabe?

Folha - O que se diz é que, uma vez no poder, os movimentos islâmicos acabam com a democracia.
Khan -
Na Turquia, os islâmicos chegaram ao poder três vezes, em 1969, 1996 e agora. Nas duas primeiras, foram os militares que minaram a democracia para derrubá-los. Na Indonésia, eles também entregaram o poder.

Folha - Mas será que no Oriente Médio terão essa oportunidade?
Khan -
No caso do Iraque, ninguém está falando em eleições livres. O que estão dizendo é que querem um governo representativo de todos os povos do país, o que significa que vão escolher indivíduos, alguns curdos, alguns sunitas, alguns xiitas, como no Afeganistão. No Afeganistão, [o presidente] Hamid Karzai não pode nem sair na rua sem a proteção de marines. Essa análise de que o 11 de setembro aconteceu porque não há democracia no Oriente Médio é errada, porque a democratização significaria que não haveria nenhum regime no mundo islâmico, incluindo na Arábia Saudita, que iria cooperar com os EUA como os atuais.

Folha - Quais foram então as razões?
Khan -
A Al Qaeda tem uma pauta de um só ponto. Quer levar o Estado islâmico a todo o mundo muçulmano e a chave é a conquista da Arábia Saudita. A razão para isso é a presença das forças americanas, que estão lá para defender a monarquia da revolução interna. O objetivo da Al Qaeda é forçar os EUA a se retirarem de lá. Lembra do atentado contra os marines em Beirute, em 1983? O Hizbollah acredita que, com 3.000 combatentes, expulsou os EUA do Líbano e depois Israel. A Al Qaeda se deu conta de que essa guerra não-convencional é o meio de superar a relação assimétrica de poder. Acreditava que com atentados os EUA se retirariam do Oriente Médio. Mas seu cálculo deu errado e o 11 de setembro se transformou em uma oportunidade para os EUA exercitarem seu poder militar e garantir a continuidade da dominação.


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