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ARTIGO
A nódoa da tortura persiste
REED BRODY
Um ano se passou desde a publicação das primeiras fotografias
de soldados dos EUA humilhando e torturando detentos da prisão de Abu Ghraib, no Iraque. Enquanto as fotografias horrorizavam o mundo, Washington tentava caracterizá-las como incidente
isolado, obra de algumas "batatas
podres". O presidente dos EUA,
George W. Bush, referiu-se ao caso como "conduta abominável
por parte de alguns soldados
americanos que desonraram nosso país, sem consideração pelos
nossos valores".
Mas agora já sabemos que o
único aspecto realmente excepcional dos horrores de Abu
Ghraib foi terem sido fotografados. Na verdade, Abu Ghraib é só
a ponta do iceberg. Ao redor do
mundo, em um grande arquipélago de centros de detenção, divulgados ou secretos, os Estados
Unidos estão brutalizando muçulmanos detidos em nome do
combate ao terrorismo.
Na baía de Guantánamo, em
Cuba, relatórios de agentes do FBI
recentemente revelados testemunham detentos acorrentados sendo forçados a sentarem-se em
seus próprios excrementos. Esses
documentos apenas vieram agravar relatos anteriores de presos
forçados em posições dolorosamente estressantes, de detentos
humilhados por interrogadoras
mulheres, e de prolongado abandono dos mesmos a temperaturas
extremamente quentes ou frias.
No Afeganistão, onde ao menos
nove prisioneiros morreram sob a
custódia dos Estados Unidos, os
detidos têm sido severamente espancados por guardas e interrogadores, privados de sono por extensivos períodos e intencionalmente expostos ao frio intenso.
Ao menos 11 suspeitos de serem
membros da Al Qaeda e com toda
probabilidade muitos mais, simplesmente "desapareceram". A
CIA os está retendo em locais
não-divulgados, sem nenhuma
notificação a seus familiares, sem
acesso ao Comitê Internacional
da Cruz Vermelha e sem supervisão de como estão sendo tratados,
colocando-os efetivamente fora
da proteção da lei.
Alega-se que o detido Khalid
Shaikh Mohammed, supostamente um idealizador dos atentados de 11 de Setembro, foi submetido à técnica do "submarino":
amarrado com correias a uma tábua e submergido à força para sofrer o pavor de ser afogado.
Cerca de 100 a 150 detidos foram
"entregues" a países onde a tortura é de rotina. Por exemplo, Maher Arar, cidadão canadense detido na cidade de Nova York durante uma transferência entre
dois vôos, foi mandado para a Síria. Depois de liberado, dez meses
mais tarde, ele descreveu as repetidas torturas de que foi vítima,
freqüentemente com cabos e fios
elétricos.
Em um aeroporto na Suécia,
agentes dos Estados Unidos encapuzaram e drogaram dois cidadãos egípcios e de lá os conduziram ao Egito, em um avião alugado pelo governo norte-americano. Também esses detidos proporcionaram detalhados relatos
de tortura incluindo choques elétricos.
Mamdouh Habib, um Australiano sob a custódia dos americanos, foi transportado do Paquistão ao Afeganistão, de lá para o
Egito e em seguida para Guantánamo. Agora, de volta à Austrália,
Habib alega que, no Egito, foi dependurado em um gancho na parede, golpeado e submetido a
choques elétricos.
Esse padrão de maus-tratos
passando por vários países não é
resultado de ações de soldados individuais que desobedeceram regras, mas sim das decisões assumidas por oficiais superiores para
dobrar as regras, ignorá-las ou
deixá-las de lado.
No entanto, somente soldados
rasos, como os reservistas do
Exército -a recruta Lynndie R.
England e o especialista Charles
A. Graner Jr.-, estão sendo acusados porque foram fotografados
em Abu Ghraib, enquanto os seus
mandantes continuam livres de
culpa.
Há um mês apenas o Exército
eximiu de todo delito o general
Ricardo Sanchez, ex-comandante
supremo das forças norte-americanas no Iraque. Mas foi esse
mesmo general Sanchez quem
concedeu autoridade aos interrogadores em Abu Ghraib de utilizar cães para aterrorizar os detidos, que assim fizeram e agora sabemos que aconteceu.
Ainda há muita coisa que não
sabemos. Diretrizes supostamente assinadas pelo presidente Bush
autorizando a CIA a estabelecer
centros de detenção secretos e a
"entregar" suspeitos a países praticantes de tortura continuam
sendo confidenciais. Muitas outras fotos e vídeos demonstrando
maus-tratos de prisioneiros permanecem sob sigilo.
Apesar das diretrizes terem sido
adotadas em nome do combate
ao terrorismo, os maus-tratos generalizados contra prisioneiros
muçulmanos certamente têm sido benéficos para a Al Qaeda. Tais
atos por parte dos Estados Unidos
também constituem um desafio
direto à defesa dos direitos humanos em todo o mundo.
Perpetradores de atrocidades,
como o Sudão e o Zimbábue, têm
se deleitado em citar os maus-tratos dispensados pelos Estados
Unidos aos seus prisioneiros para
desviar críticas à própria má conduta.
Porém mais inquietante de tudo
talvez seja a idéia que os Estados
Unidos tenham se convertido em
uma nação que considera a tortura como algo aceitável. Em janeiro
deste ano, apesar de todo o dano
causado, o secretário da Justiça
dos EUA, Alberto Gonzales, continuava insistindo em que não havia nenhum impedimento para
que a CIA dispensasse tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos ao interrogar cidadãos
não-americanos fora dos Estados
Unidos.
Para poder limpar a nódoa de
Abu Ghraib, os Estados Unidos
terão de processar os oficiais superiores que ordenaram ou tacitamente perdoaram as torturas,
confessar aquilo que o presidente
autorizou e repudiar de uma vez
por todas os maus-tratos a prisioneiros.
Reed Brody, 51, é conselheiro jurídico
da organização não-governamental de
defesa dos direitos humanos Human
Rights Watch e autor do relatório, publicado pela mesma ONG, intitulado "Na
Rota de Abu Ghraib". Este artigo, publicado no Brasil com exclusividade pela Folha, foi distribuído para outros veículos
de comunicação em todo o mundo.
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