São Paulo, quarta-feira, 15 de junho de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

COMENTÁRIO

A vitória da regra da civilização

CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA

A decisão da Corte Suprema argentina de enterrar as leis chamadas de Ponto Final e Obediência Devida não deveria, a rigor, ser comemorada.
Trata-se apenas de restabelecer um princípio básico: crimes contra a humanidade não prescrevem. Não se pode pôr um ponto final a eles, como pretenderam os militares argentinos, para cobrir o genocídio que praticaram, com a conivência de regimes civis enfraquecidos pela tutela das Forças Armadas.
Conto a propósito um episódio que me tocou viver, como correspondente desta Folha em Buenos Aires, nas vésperas das eleições de 1983, que marcariam a volta à democracia.
Fui entrevistar os dois candidatos favoritos, Raúl Alfonsín (radical) e Ítalo Luder (peronista). A Alfonsín perguntei se ele iria promover, se eleito, os devidos processos contra os militares responsáveis pelas colossais violações aos direitos humanos já conhecidas mesmo à época.
Alfonsín fugiu pela tangente, como era de praxe na época, mas logo pediu para que eu desligasse o gravador. Gravador desligado, disse-me entre irônico e irritado: "Você quer que eu prenda todos eles, não é? Então, dou a você a ordem de prisão, e você vai lá levá-la a cada um dos comandantes nos seus quartéis".
Foi esse o espírito de impotência que, mais tarde, levaria às leis agora revogadas, depois de algumas revoltas militares contra o governo Alfonsín exatamente por ter tentado pôr na cadeia pelos menos os principais responsáveis pela ditadura do período entre 1976 e 1983.
Que essas leis sejam derrubadas agora reflete, basicamente, duas coisas:
1) o enfraquecimento do poder militar não apenas na Argentina mas em toda a América Latina. A maior demonstração está na Bolívia. Seria absolutamente impensável nos anos 70 e 80 viver uma situação como o país andino vive sem um golpe militar (ou mais de um até);
2) a determinação de um presidente, Néstor Kirchner, de recuperar a memória dos anos de chumbo. Não se constrói um memorial às vítimas justamente em um dos cenários mais escabrosos da violência (a Esma, a Escola de Mecânica da Armada) sem que, concomitantemente, os algozes percam a proteção do manto legal que eles próprios impuseram às autoridades civis.
Claro está que também contribuiu poderosamente a pressão de uma fatia da sociedade que, contra vento e maré, lutou sempre para que a vida real desmentisse o título de um livro célebre do escritor argentino Oswaldo Soriano: "No habrá pena ni olvido".
Poderá haver punição, sim, e não haverá esquecimento, não -é o que decidiu agora a Suprema Corte.


Texto Anterior: Frases
Próximo Texto: Anistia é tema controverso no Brasil
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.