|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
COMENTÁRIO
A vitória da regra da civilização
CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA
A decisão da Corte Suprema argentina de enterrar as leis chamadas de Ponto Final e Obediência
Devida não deveria, a rigor, ser
comemorada.
Trata-se apenas de restabelecer
um princípio básico: crimes contra a humanidade não prescrevem. Não se pode pôr um ponto
final a eles, como pretenderam os
militares argentinos, para cobrir o
genocídio que praticaram, com a
conivência de regimes civis enfraquecidos pela tutela das Forças
Armadas.
Conto a propósito um episódio
que me tocou viver, como correspondente desta Folha em Buenos
Aires, nas vésperas das eleições de
1983, que marcariam a volta à democracia.
Fui entrevistar os dois candidatos favoritos, Raúl Alfonsín (radical) e Ítalo Luder (peronista). A
Alfonsín perguntei se ele iria promover, se eleito, os devidos processos contra os militares responsáveis pelas colossais violações
aos direitos humanos já conhecidas mesmo à época.
Alfonsín fugiu pela tangente,
como era de praxe na época, mas
logo pediu para que eu desligasse
o gravador. Gravador desligado,
disse-me entre irônico e irritado:
"Você quer que eu prenda todos
eles, não é? Então, dou a você a ordem de prisão, e você vai lá levá-la
a cada um dos comandantes nos
seus quartéis".
Foi esse o espírito de impotência que, mais tarde, levaria às leis
agora revogadas, depois de algumas revoltas militares contra o
governo Alfonsín exatamente por
ter tentado pôr na cadeia pelos
menos os principais responsáveis
pela ditadura do período entre
1976 e 1983.
Que essas leis sejam derrubadas
agora reflete, basicamente, duas
coisas:
1) o enfraquecimento do poder
militar não apenas na Argentina
mas em toda a América Latina. A
maior demonstração está na Bolívia. Seria absolutamente impensável nos anos 70 e 80 viver uma
situação como o país andino vive
sem um golpe militar (ou mais de
um até);
2) a determinação de um presidente, Néstor Kirchner, de recuperar a memória dos anos de
chumbo. Não se constrói um memorial às vítimas justamente em
um dos cenários mais escabrosos
da violência (a Esma, a Escola de
Mecânica da Armada) sem que,
concomitantemente, os algozes
percam a proteção do manto legal
que eles próprios impuseram às
autoridades civis.
Claro está que também contribuiu poderosamente a pressão de
uma fatia da sociedade que, contra vento e maré, lutou sempre
para que a vida real desmentisse o
título de um livro célebre do escritor argentino Oswaldo Soriano:
"No habrá pena ni olvido".
Poderá haver punição, sim, e
não haverá esquecimento, não
-é o que decidiu agora a Suprema Corte.
Texto Anterior: Frases Próximo Texto: Anistia é tema controverso no Brasil Índice
|