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São Paulo, sexta-feira, 16 de maio de 2003

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TRANSIÇÃO NA ARGENTINA

Empresários dizem temer "ressentimento" contra o setor e pedem que o presidente eleito imite Lula

Empresariado já critica discurso de Kirchner

Daniel Garcia/France Presse
Kirchner brinda com sua mulher, a senadora Cristina Fernández (dir.), e a apresentadora de TV Mirtha Legrand durante programa


CLÓVIS ROSSI
ENVIADO ESPECIAL A BUENOS AIRES

Néstor Kirchner nem tomou posse como presidente da Argentina e já foi alvo dos primeiros disparos dos setores neoliberais, pelo discurso que pronunciou anteontem, uma espécie de antecipação do pronunciamento de posse.
"Temo uma economia dirigista [estatizante]. Há ressentimento contra as empresas", afirmou por exemplo Arturo Acevedo, presidente da Acindar, uma das mais importantes do país, e dirigente da Associação Empresarial Argentina.
É uma referência ao fato de que Kirchner, em seu discurso, enxergara na renúncia de Carlos Saúl Menem uma suposta conspiração para debilitar o novo governo, partida de "setores do poder econômico que se beneficiaram com privilégios inadmissíveis durante a década passada, ao amparo de um modelo de especulação financeira e subordinação política".
O mesmo trecho foi criticado por Héctor Méndez, primeiro vice-presidente da UIA (União Industrial Argentina, uma espécie de CNI local).
Méndez recomendou a Kirchner, por intermédio do matutino "La Nación", "sair do pêndulo entre modelos e buscar um caminho intermediário para resolver o problema do desemprego".
A referência ao pêndulo se deve ao fato de que o presidente eleito dissera ao longo de toda a campanha que o modelo menemista, "de especulação financeira", seria substituído por um novo modelo, "de produção e inclusão".
O reparo de Méndez torna-se mais significativo pelo fato de que a sua entidade deu apoio a Kirchner, em comunicado oficial. O texto diz que Kirchner "conta com o absoluto respaldo e legitimidade para avançar nas propostas que expressara durante sua candidatura à Presidência".
Mas o ataque mais duro e mais emblemático veio na coluna de José Claudio Escribano em "La Nación". Escribano, durante a campanha, tornou-se forte propagandista da candidatura de Ricardo López Murphy, o efêmero ministro da Economia de Fernando de la Rúa, transformado agora em líder do liberalismo argentino pelo relativamente bom desempenho eleitoral (foi o terceiro colocado).
Escribano qualifica de "péssimo" o discurso de Kirchner e diz que o presidente eleito "se permitiu a temeridade de semear dúvidas sobre qual será o tom de sua relação com o empresariado e com as Forças Armadas".
Encaixa ainda uma frase que pode ser lida como profecia agourenta ou como convite a um golpe: "A Argentina resolveu dar-se governo por um ano" (o mandato de Kirchner é de quatro).
A alusão às Forças Armadas se deve ao trecho do discurso em que Kirchner reivindica os desaparecidos (30 mil durante a ditadura militar do período 1976-83) e diz que, nessa época, montou-se "o maior sistema repressivo" que a Argentina jamais conheceu.
A frase pode ser temerária, como escreveu o colunista de "La Nación", mas é também a mais rigorosa verdade.
De todo modo, Kirchner já tratou de se antecipar a qualquer golpismo. "Não chego à Casa Rosada para ir embora de helicóptero; entro para ficar quatro anos", disse ontem, no almoço com Mirtha Legrand, a Hebe Camargo argentina, em alusão à fuga de helicóptero de De la Rúa.
Os disparos da direita foram antecipadamente respondidos pela esquerda. Miguel Bonasso, colunista do jornal "Página 12", classifica o discurso de "exemplar, firme, patriótico e generoso".
No empresariado, quem não foi ao ataque deu-se ao luxo de aconselhar o presidente sobre qual comportamento adotar. "É importante que ele entenda que tem de se parecer o mais possível com Lula e o menos possível com Chávez" (presidente da Venezuela), receita Cristiano Ratazzi, presidente da Fiat.
O curioso é que, na sua primeira aparição na TV após a confirmação de que não haverá segundo turno, Kirchner elogiou Lula, chamando-o de "um verdadeiro achado para a América Latina".
Significa que está seguindo o conselho de Ratazzi? Não. Significa que Lula, fora do Brasil, é lido de duas maneiras: a direita o incensa pelo ajuste fiscal, pela prudência com os juros e com a inflação. Os setores mais à esquerda, como Kirchner, confiam em que o forte do governo Lula será a ação social, além da ênfase na integração da América do Sul.
Os disparos dos setores liberais não são a única pressão sobre um presidente supostamente débil por ter tido apenas 22% dos votos.
Se a direita pretende usar a debilidade para pressioná-lo, a extrema esquerda não vai ficar atrás.
"Um presidente débil é bom porque vai ficar condicionado pelas necessidades do povo", diz Juan Carlos Alderete, da trotskista Corrente Classista Combativa, líder dos "piqueteros", os desempregados que bloqueiam ruas ou estradas para dar maior visibilidade a seus protestos.


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