São Paulo, sábado, 16 de outubro de 2004

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IRAQUE SOB TUTELA

Última mulher a ser libertada da prisão onde americanos cometeram torturas narra as violências sofridas

"Ainda não saí de Abu Ghraib", diz ex-presa

CÈCILE HENNION
DO "LE MONDE", EM BAGDÁ

"Eu? Eu amo Saddam Hussein." Ao exprimir essa opinião, Houda al Azzawi não exibe nenhuma precaução. "Isso não significa que eu participe da resistência e muito menos que seja, ou tenha sido, terrorista."
Acusada de financiar a insurreição armada, Azzawi foi encarcerada por mais de sete meses na prisão de Abu Ghraib, localizada nas proximidades de Bagdá e local das torturas e abusos denunciados pelas fotos divulgadas em abril. Dessa experiência, ela guarda um rancor persistente contra os norte-americanos.
Isso não a impede de condenar "as ações criminosas" de um grupo como o Tawhid e Jihad (unificação e guerra santa), liderado pelo terrorista jordaniano Abu Musab al Zarqawi.
Ao exibir seus reféns usando macacões alaranjados como os vestidos pelos detentos considerados "combatentes inimigos" mantidos pelos Estados Unidos na base militar de Guantánamo (Cuba) e ao decapitar o norte-americano Nick Berg quando eclodiu o escândalo da tortura, o Tawhid e Jihad se apresentou como uma organização vingadora dos prisioneiros iraquianos.
O grupo já seqüestrou e decapitou dois engenheiros norte-americanos e em 8 de outubro fez o mesmo com o britânico Kenneth Bigley, depois de exigir a libertação de todas as prisioneiras do Iraque. Azzawi, se é testemunha dos maus-tratos infligidos aos prisioneiros, estava também em posição ideal para saber que não resta nenhuma mulher prisioneira em Abu Ghraib. Porque ela foi a última a ser libertada, em 19 de julho de 2004.

Mulher de negócios
Sua fortuna pessoal a colocava como a iraquiana mais rica do país depois de Sajida, a primeira mulher de Saddam Hussein. Ela retomou o comando da Ishtar, sua importadora Mercedes. Seu status como mulher de negócios de 49 anos, recentemente divorciada, facilita a liberdade incomum que ela exibe ao falar. Usando roupas elegantes e exibindo unhas douradas e mãos enfeitadas por jóias que tilintam, maquiagem audaciosa e abundante tintura loira nos cabelos, basta um olhar para saber que Azzawi não é uma "iraquiana típica". Ao relatar as histórias que presenciou em Abu Ghraib, ela é uma das raras mulheres do Iraque que ousa testemunhar.
Seus problemas começaram no final de 2003. A prática de denúncias, surgida ainda na era de Saddam Hussein, se tornou esporte nacional. Azzawi e sua rica família se tornaram alvos fáceis. Cartas anônimas os preveniram de que, caso não pagassem os chantagistas, seriam denunciados aos norte-americanos. Ali, o irmão mais velho, foi revistado. Nahla, a irmã mais nova, foi detida e depois libertada sob fiança de US$ 10 mil. Mas Azzawi se recusou a ceder à chantagem.
Como boa mulher de negócios, decidiu cuidar do problema por sua conta. Em 22 de dezembro de 2003, foi à base norte-americana no palácio de Adhamiya a fim de protestar contra "aquela situação inaceitável".
"Um oficial me escutou educadamente por dez minutos. Fomos em seguida interrompidos por um militar que trouxe um papel. O oficial leu a mensagem. Um segundo mais tarde, deixei de ser "madame" e me tornei "terrorista"." Três fuzileiros navais lhe algemaram as mãos por trás das costas e encapuzaram sua cabeça.
Muitos meses transcorreram antes que Azzawi compreendesse que estava sendo acusada de financiar a insurgência.
Em dezembro, sua detenção foi seguida pela de seus três irmãos, Ali, Ayad e Mutaz, e de sua irmã Nahla. Todos eram prisioneiros no centro de detenção de Adhamiya, mas desconheciam o paradeiro dos familiares. Na cela que ocupava, de mãos algemadas e olhos vendados, Houda Azzawi reconheceu que sua irmã Nahla estava presa na cela ao lado, devido aos soluços que ouvia.
A isso se seguiu uma semana dolorosa: chutes e coronhadas nos seios e no ventre, se ver forçada a ficar agachada ou em pé por longos períodos, privação de comida e bebida, música "ensurdecedora" tocando ininterruptamente. Azzawi deslocou um ombro devido ao empurrão de um guarda. "Paradoxalmente, isso foi o melhor que poderia me acontecer. O médico ficou furioso com o guarda e exigiu que me algemasse com as mãos no ventre, e não às costas, uma postura menos dolorosa para mim."

"Os gritos de minha irmã"
O pior estava por vir. "Uma noite, ouvi um ruído surdo e os gritos da minha irmã. Haviam lançado sobre ela o corpo de um homem nu. Ela percebeu que o corpo estava inerte. Com as mãos algemadas à frente, consegui levantar um canto da venda que me cegava. O homem era meu irmão Ayad e seu rosto estava coberto de sangue. Pedi a Nahla que tentasse ouvir se o coração dele ainda batia. Mas não batia mais. Ela passou a toda a noite com o cadáver de Ayad no colo."
O pai só conseguiria que o corpo fosse liberado em abril. No atestado de óbito lia-se "Ayad, homem, iraquiano, muçulmano, filho de Hafez Ahmed Ali al Azzawi. Causa da morte, de acordo com o relatório fornecido por forças da coalizão: parada cardíaca, razão desconhecida".
A foto do morto, que o pai pagou em dólar para obter, mostra um jovem de 32 anos e leva o número 1.640. O corpo tem a cabeça deformada na região da têmpora esquerda e o abdômen coberto de manchas escuras.
Depois, ela foi transferida. "Cheguei a Abu Ghraib em 4 de janeiro de 2004. Recebi o número 156.283 e uma cela de dois metros. Passei 197 dias na cadeia, e sofri 30 interrogatórios."
"Depois de três meses, um dos dirigentes da prisão pediu que eu trabalhasse como intérprete para um dos médicos. O escândalo quanto às fotos de Abu Ghraib só descobri depois que tinha saído de lá. As fotos não mostravam a nossa ala, mas fomos todos testemunhas de cenas iguais ou piores. Vi homens a quem os soldados torturaram introduzindo garrafas de água no reto. Retrospectivamente, as condições para nós melhoraram após o escândalo."
Segundo Azzawi, "as mulheres foram preservadas, em termos relativos. Nenhuma delas testemunhará ter sido estuprada. Ser violada por um homem é a humilhação suprema, uma condenação à morte pela própria família", diz. Nos meses que ela passou na prisão, o marido de Azzawi pediu o divórcio. "Não sei se foi por causa do escândalo, mas digo com orgulho que os prisioneiros me respeitavam."
A libertação chegou, enfim, em 19 de julho, depois da intervenção do xeque Hicham al Douleimi, que se tornou o principal negociador da libertação de prisioneiros políticos. Em retribuição, a família Azzawi lhe deu a mão de Houla em casamento. Ela se tornou sua 19ª mulher.
Azzawi retomou sua posição de mulher livre. Além da importadora de Mercedes, ela consagra seu tempo à libertação dos dois irmãos que ainda estão presos e a conseguir que a morte de Ayad seja oficialmente reconhecida. Outro projeto que pretende realizar, que deverá ter um alto custo, é a criação de uma "galeria Abu Ghraib", onde manterá em exposição os suvenires que conservou após a sua temporada na prisão: o bracelete com o número, a camiseta do Exército que um prisioneiro roubou para ela no dia em que suas roupas rasgaram, expondo seu sutiã, as peças de roupa costuradas a partir de trapos...
"Eu queria muito, quando deixei a cela, ter pronunciado uma grande frase ou pensado algo de bonito. Era a última mulher na prisão! Mas minha cabeça estava vazia. Bizarramente, as únicas palavras que me ocorreram vieram em inglês: "bye-bye". Mas não acho que eu tenha conseguido sair completamente de Abu Ghraib até agora."


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