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IRAQUE SOB TUTELA
Última mulher a ser libertada da prisão onde americanos cometeram torturas narra as violências sofridas
"Ainda não saí de Abu Ghraib", diz ex-presa
CÈCILE HENNION
DO "LE MONDE", EM BAGDÁ
"Eu? Eu amo Saddam Hussein."
Ao exprimir essa opinião, Houda
al Azzawi não exibe nenhuma
precaução. "Isso não significa que
eu participe da resistência e muito
menos que seja, ou tenha sido,
terrorista."
Acusada de financiar a insurreição armada, Azzawi foi encarcerada por mais de sete meses na
prisão de Abu Ghraib, localizada
nas proximidades de Bagdá e local das torturas e abusos denunciados pelas fotos divulgadas em
abril. Dessa experiência, ela guarda um rancor persistente contra
os norte-americanos.
Isso não a impede de condenar
"as ações criminosas" de um grupo como o Tawhid e Jihad (unificação e guerra santa), liderado pelo terrorista jordaniano Abu Musab al Zarqawi.
Ao exibir seus reféns usando
macacões alaranjados como os
vestidos pelos detentos considerados "combatentes inimigos"
mantidos pelos Estados Unidos
na base militar de Guantánamo
(Cuba) e ao decapitar o norte-americano Nick Berg quando
eclodiu o escândalo da tortura, o
Tawhid e Jihad se apresentou como uma organização vingadora
dos prisioneiros iraquianos.
O grupo já seqüestrou e decapitou dois engenheiros norte-americanos e em 8 de outubro fez o
mesmo com o britânico Kenneth
Bigley, depois de exigir a libertação de todas as prisioneiras do
Iraque. Azzawi, se é testemunha
dos maus-tratos infligidos aos
prisioneiros, estava também em
posição ideal para saber que não
resta nenhuma mulher prisioneira em Abu Ghraib. Porque ela foi
a última a ser libertada, em 19 de
julho de 2004.
Mulher de negócios
Sua fortuna pessoal a colocava
como a iraquiana mais rica do
país depois de Sajida, a primeira
mulher de Saddam Hussein. Ela
retomou o comando da Ishtar,
sua importadora Mercedes. Seu
status como mulher de negócios
de 49 anos, recentemente divorciada, facilita a liberdade incomum que ela exibe ao falar. Usando roupas elegantes e exibindo
unhas douradas e mãos enfeitadas por jóias que tilintam, maquiagem audaciosa e abundante
tintura loira nos cabelos, basta
um olhar para saber que Azzawi
não é uma "iraquiana típica". Ao
relatar as histórias que presenciou
em Abu Ghraib, ela é uma das raras mulheres do Iraque que ousa
testemunhar.
Seus problemas começaram no
final de 2003. A prática de denúncias, surgida ainda na era de Saddam Hussein, se tornou esporte
nacional. Azzawi e sua rica família
se tornaram alvos fáceis. Cartas
anônimas os preveniram de que,
caso não pagassem os chantagistas, seriam denunciados aos norte-americanos. Ali, o irmão mais
velho, foi revistado. Nahla, a irmã
mais nova, foi detida e depois libertada sob fiança de US$ 10 mil.
Mas Azzawi se recusou a ceder à
chantagem.
Como boa mulher de negócios,
decidiu cuidar do problema por
sua conta. Em 22 de dezembro de
2003, foi à base norte-americana
no palácio de Adhamiya a fim de
protestar contra "aquela situação
inaceitável".
"Um oficial me escutou educadamente por dez minutos. Fomos
em seguida interrompidos por
um militar que trouxe um papel.
O oficial leu a mensagem. Um segundo mais tarde, deixei de ser
"madame" e me tornei "terrorista"." Três fuzileiros navais lhe algemaram as mãos por trás das
costas e encapuzaram sua cabeça.
Muitos meses transcorreram
antes que Azzawi compreendesse
que estava sendo acusada de financiar a insurgência.
Em dezembro, sua detenção foi
seguida pela de seus três irmãos,
Ali, Ayad e Mutaz, e de sua irmã
Nahla. Todos eram prisioneiros
no centro de detenção de Adhamiya, mas desconheciam o paradeiro dos familiares. Na cela que
ocupava, de mãos algemadas e
olhos vendados, Houda Azzawi
reconheceu que sua irmã Nahla
estava presa na cela ao lado, devido aos soluços que ouvia.
A isso se seguiu uma semana
dolorosa: chutes e coronhadas
nos seios e no ventre, se ver forçada a ficar agachada ou em pé por
longos períodos, privação de comida e bebida, música "ensurdecedora" tocando ininterruptamente. Azzawi deslocou um ombro devido ao empurrão de um
guarda. "Paradoxalmente, isso foi
o melhor que poderia me acontecer. O médico ficou furioso com o
guarda e exigiu que me algemasse
com as mãos no ventre, e não às
costas, uma postura menos dolorosa para mim."
"Os gritos de minha irmã"
O pior estava por vir. "Uma noite, ouvi um ruído surdo e os gritos
da minha irmã. Haviam lançado
sobre ela o corpo de um homem
nu. Ela percebeu que o corpo estava inerte. Com as mãos algemadas à frente, consegui levantar um
canto da venda que me cegava. O
homem era meu irmão Ayad e
seu rosto estava coberto de sangue. Pedi a Nahla que tentasse ouvir se o coração dele ainda batia.
Mas não batia mais. Ela passou a
toda a noite com o cadáver de
Ayad no colo."
O pai só conseguiria que o corpo fosse liberado em abril. No
atestado de óbito lia-se "Ayad,
homem, iraquiano, muçulmano,
filho de Hafez Ahmed Ali al Azzawi. Causa da morte, de acordo
com o relatório fornecido por forças da coalizão: parada cardíaca,
razão desconhecida".
A foto do morto, que o pai pagou em dólar para obter, mostra
um jovem de 32 anos e leva o número 1.640. O corpo tem a cabeça
deformada na região da têmpora
esquerda e o abdômen coberto de
manchas escuras.
Depois, ela foi transferida.
"Cheguei a Abu Ghraib em 4 de
janeiro de 2004. Recebi o número
156.283 e uma cela de dois metros.
Passei 197 dias na cadeia, e sofri 30
interrogatórios."
"Depois de três meses, um dos
dirigentes da prisão pediu que eu
trabalhasse como intérprete para
um dos médicos. O escândalo
quanto às fotos de Abu Ghraib só
descobri depois que tinha saído
de lá. As fotos não mostravam a
nossa ala, mas fomos todos testemunhas de cenas iguais ou piores.
Vi homens a quem os soldados
torturaram introduzindo garrafas
de água no reto. Retrospectivamente, as condições para nós melhoraram após o escândalo."
Segundo Azzawi, "as mulheres
foram preservadas, em termos relativos. Nenhuma delas testemunhará ter sido estuprada. Ser violada por um homem é a humilhação suprema, uma condenação à
morte pela própria família", diz.
Nos meses que ela passou na prisão, o marido de Azzawi pediu o
divórcio. "Não sei se foi por causa
do escândalo, mas digo com orgulho que os prisioneiros me respeitavam."
A libertação chegou, enfim, em
19 de julho, depois da intervenção
do xeque Hicham al Douleimi,
que se tornou o principal negociador da libertação de prisioneiros
políticos. Em retribuição, a família Azzawi lhe deu a mão de Houla
em casamento. Ela se tornou sua
19ª mulher.
Azzawi retomou sua posição de
mulher livre. Além da importadora de Mercedes, ela consagra seu
tempo à libertação dos dois irmãos que ainda estão presos e a
conseguir que a morte de Ayad
seja oficialmente reconhecida.
Outro projeto que pretende realizar, que deverá ter um alto custo,
é a criação de uma "galeria Abu
Ghraib", onde manterá em exposição os suvenires que conservou
após a sua temporada na prisão: o
bracelete com o número, a camiseta do Exército que um prisioneiro roubou para ela no dia em
que suas roupas rasgaram, expondo seu sutiã, as peças de roupa costuradas a partir de trapos...
"Eu queria muito, quando deixei a cela, ter pronunciado uma
grande frase ou pensado algo de
bonito. Era a última mulher na
prisão! Mas minha cabeça estava
vazia. Bizarramente, as únicas palavras que me ocorreram vieram
em inglês: "bye-bye". Mas não
acho que eu tenha conseguido
sair completamente de Abu
Ghraib até agora."
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