São Paulo, sábado, 16 de outubro de 2004

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ARTIGO

Novo "Todos os Homens do Presidente" é preciso

FRANK RICH
DO "NEW YORK TIMES"

O poder do cinema é tamanho que a primeira imagem que a palavra "Watergate" nos sugere, passadas três décadas, não é a de Richard Nixon, mas a da dourada dupla Redford e Hoffman saindo em resgate do país no filme "Todos os Homens do Presidente". Mas, se a nossa atual Presidência mostra sinais de uma síndrome de Watergate, ainda não chegamos à conclusão imortalizada por Hollywood, na qual nossos heróis finalmente levam Nixon a renunciar, em seu segundo mandato.
Estamos de volta, em lugar disso, aos primeiros passos do filme, ao primeiro mandato, antes dos crimes cometidos na invasão do edifício Watergate, quando ninguém havia ouvido falar de Woodward e Bernstein. Naquela época, uma Casa Branca arrogante e furiosa com a cobertura desfavorável que vinha recebendo da imprensa por conta de uma guerra mal conduzida e impopular, continuava a voar alto, enquanto reprimia com impunidade qualquer repórter ou organização noticiosa que contestasse a mensagem, difundida de maneira concentrada e controlada, de que a vitória estava a um passo.
Foi então que o vice-presidente Spiro Agnew, em discurso redigido por seu assessor Patrick Buchanan, tentou desacreditar a imprensa como uma elite. Foi então, igualmente, que o secretário da Justiça John Mitchell, sob o pretexto de proteger a segurança nacional, solicitou que fossem instaladas escutas nos telefones de Hedrick Smith, do "New York Times", e de Marvin Kalb, da rede de TV CBS, bem como ordenou investigação completa pelo Serviço Federal de Investigação (FBI) sobre Daniel Schorr, também da CBS. Hoje, é o Departamento da Justiça dirigido por John Ashcroft, também invocando a "segurança nacional", que espera obter os registros telefônicos de Judith Miller e Philip Shenon, do "New York Times", alegando que essa medida, virtualmente sinônima de uma escuta, é justificada por artigos de autoria deles sobre as organizações de caridade islâmicas e sobre o terrorismo, publicados há quase três anos.

Alarme
"O direito fundamental dos norte-americanos de penetrar e criticar o funcionamento do governo, por meio de nossa imprensa livre, está sob ataque como nunca antes", escreveu William Safire. Quando um egresso da Casa Branca de Nixon diz que nossa imprensa está sob um ataque "jamais visto", é melhor escutar. O que o alarma agora são os esforços de Patrick Fitzgerald, o promotor especial apontado para o caso Valerie Plame-Robert Novak, para ameaçar repórteres do "New York Times" e da revista "Time" com sentenças de prisão caso não revelem suas fontes. Dado o fato de que a repórter em questão do "New York Times" (Judith Miller, uma vez mais) não tenha sequer escrito um artigo sobre o tema da investigação, a atitude de Fitzgerald é absurda a ponto de levá-lo a delinear um complô de ficção científica.
Assim que Woodward e Bernstein começaram a investigar Watergate, Nixon armou uma trama de vingança econômica ordenando investigações da Comissão Federal de Comunicações (FCC) sobre as estações de TV controladas pela matriz do "Washington Post". A Casa Branca atual vem praticando intimidação preventiva da mídia, de maneira semelhante à sua doutrina de guerra preventiva. O presidente da FCC, usando o seio de Janet Jackson e a boca de Howard Stern como pretextos, abalou a Viacom, que transmitiu as infrações desses dois comunicadores contra a "decência", a ponto de levar o presidente do conselho da empresa, Sumner Redstone, que se descreve como "democrata liberal", a anunciar abruptamente seu apoio à reeleição de George W. Bush. "Voto no que é bom para a Viacom", explicou.
A Viacom está longe de ser a única gigante da mídia atemorizada diante da perspectiva de que a atual Casa Branca ameace seus interesses corporativos, caso saia da linha. A recusa da Disney de distribuir o politicamente carregado "Fahrenheit 11 de Setembro", de Michael Moore, em um ano eleitoral cheiraria menos mal se a empresa aplicasse princípios iguais às estações de rádio controladas por sua subsidiária ABC, onde as declarações polêmicas e igualmente parciais de Rush Limbaugh e Sean Hannity são ouvidas a cada dia. Mesmo um projeto cinematográfico discreto que conflita com os dogmas da era Bush causou medo à maior empresa de mídia do mundo, a Time Warner, que controla a rede de notícias CNN. A divisão Warner Brothers do grupo, que estava pronta para lançar uma versão especial em DVD de "Três Reis", filme crítico à primeira guerra do Golfo Pérsico, dirigido por David O. Russell em 1999, subitamente cancelou um item adicional que a versão 2004 conteria, um novo documentário de Russell criticando a atual guerra.

"Brincadeira"
Para compreender a espécie de jornalismo que o governo Bush espera dessas empresas, basta estudar aquelas que já se tornaram suas colaboradoras. A Fox News é barulhenta o suficiente quanto às suas preferências políticas, chegando ao extremo de colocar em seu website um artigo com citações fictícias de John Kerry. (Depois de muitos protestos, a empresa se retratou dizendo que o artigo "era uma brincadeira".) Mas a Fox é apenas a ponta do império de Rupert Murdoch. Quando o "New York Post" cobriu a divulgação do relatório do principal inspetor de armas da Agência Central de Inteligência (CIA), Charles Duelfer, publicou o artigo na página 8 e não mencionou a conclusão de que "nenhum estoque de armas de destruição em massa foi encontrado no Iraque" antes do 16 parágrafo.
É difícil imaginar uma operação mais insidiosa que a de Murdoch, mas o Sinclair Broadcast Group talvez atenda a essa descrição. Proprietário ou operador de 62 estações de TV em todo o país, incluindo afiliadas das quatro grandes redes nacionais de televisão, a empresa atrai pouco interesse da mídia porque é invisível em Nova York, Washington e Los Angeles, onde não controla estações. Mas a Sinclair, cujos principais executivos são todos doadores no limite máximo de dinheiro para a campanha de Bush, foi detectada pela primeira vez no segundo trimestre, quando o senador John McCain a acusou de "falta de patriotismo" ao ordenar que suas oito estações da rede ABC suspendessem a transmissão do programa "Nightline" no dia em que Ted Koppel leu no ar o nome das 721 baixas norte-americanas no Iraque. Isso aconteceu um dia depois que Paul Wolfowitz, secretário assistente da Defesa, subestimou as baixas norte-americanas ao depor, diante do Congresso, que o número não passava de 500. Como o governo Nixon no passado, o governo Bush chegou à Casa Branca já obcecado com a administração das notícias. Nixon concedeu menor número de entrevistas coletivas do que qualquer presidente desde Herbert Hoover (1929-33); já Bush concedeu o menor número de coletivas na história norte-americana. Nos primeiros anos de governo de Nixon, um estudo especial do National Press Club concluiu que o presidente instituíra "um esforço sem precedentes, abarcando todo o governo, para controlar, restringir e ocultar informações". Parece familiar? O atual presidente fez revogar discretamente a Lei dos Documentos Presidenciais, de 1978, que o Congresso instituiu após Watergate como antídoto ao sigilo patológico imposto por Nixon.
Ainda que o 11 de setembro tenha provocado o primeiro esforço do então porta-voz da presidência Ari Fleischer para solicitar que a imprensa "prestasse atenção ao que diz", foi o fracasso no Iraque que fez com que o governo Bush cruzasse os limites da intervenção aberta.


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