São Paulo, sábado, 16 de outubro de 2004

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ELEIÇÃO NOS EUA

No início do mandato, o presidente dos EUA era retratado como uma pessoa amigável e inofensiva

Piadas sobre Bush são hoje implacáveis e mais partidárias

JASON ZENGERLE
DO "NEW YORK TIMES"

Em dezembro de 1992, poucas semanas antes de deixar a Presidência, George Bush (o pai) convidou Dana Carvey à Casa Branca. Carvey passara os quatro anos anteriores imitando Bush no programa "Saturday Night Live", mostrando-o como homem aristocrático e medroso.
No entanto, segundo relatos da imprensa, enquanto Carvey fazia suas imitações desde atrás de um pódio no Salão Oriental, o presidente ria e aparentava estar mais feliz do que estivera havia semanas. Não é difícil entender porque: o humor era leve e apolítico, zombando um pouco de manias pessoais menores do presidente.
A relação do segundo presidente Bush com a comédia é totalmente diferente. Brincando com uma das frases do próprio presidente, poderíamos dizer que o estado das piadas sobre George W. Bush é partidário e implacável.
Em programas de entrevistas de fim de noite, publicidade política e no novo e fértil campo do humor na Internet, as piadas sobre o presidente Bush atual são muito mais ásperas do que eram as brincadeiras envolvendo seu pai ou Bill Clinton -mais ásperas, inclusive, do que as que circulavam no início de seu mandato.

QI baixo
Naquela época o presidente era alvo de zombaria por causa de seus erros de sintaxe e seu Q.I. baixo. Hoje muitas piadas sobre Bush retratam o presidente como figura ameaçadora, irresponsável.
Essa mudança se deve em parte à guerra e à economia instável. E a esquerda redescobriu o humor como ferramenta política.
O melhor indicativo quanto ao estado do humor relativo a George W. Bush talvez seja Will Ferrell. Como Dana Carvey, Ferrell tornou-se conhecido fazendo uma imitação de um presidente Bush no "Saturday Night Live". Num primeiro momento, o Bush recriado por Ferrell também era da variedade mais gentil e leve.
Durante a campanha de 2000 e os primeiros anos do presidente no poder, o Bush de Ferrell era um sujeito amigável e inofensivo.
O Bush de Ferrell era um sujeito do qual não era difícil se gostar. Talvez seja por isso que a representação parecia ser tão bem aceita pelo próprio Bush. Pouco antes da eleição de 2000, Bush apareceu no "Saturday Night Live" para zombar de suas próprias gafes.
É pouco provável que alguém na Casa Branca continue rindo com Will Ferrell hoje. Embora tenha deixado o "Saturday Night Live" em 2002, o ator recentemente retomou sua representação de Bush, primeiro num evento de levantamento de fundos para a organização ambientalista Conselho de Defesa dos Recursos Naturais, em maio, e depois em um anúncio do grupo de esquerda America Coming Together.
O George W. Bush representado por Ferrell hoje ainda é um boboca, um sujeito fascinado por seu Gameboy e que se apavora com um cavalo pastando perto dele. Mas tornou-se ideólogo.
No evento de levantamento de fundos, Bush (na versão encarnada por Ferrell), usando roupa de astronauta, gabou-se de seu plano de substituir as sequóias antigas extraídas por madeireiras por "árvores" feitas de compensado pintado de vermelho. Ele disse ao público presente: "Será que vou conseguir fazer tudo o que vocês querem? Não. Falando francamente, muitas espécies ameaçadas serão extintas. Mas isso faz parte da evolução e da seleção natural. Que, por sinal, são coisas em que não acredito".
Depois do 11 de setembro de 2001, muitos humoristas declararam moratória do humor em torno do presidente. E, mesmo quando eles se sentiram dispostos a pôr fim à moratória, o público, em muitos casos, não estava.
Em pouco tempo, Jay Leno e David Letterman voltaram a fazer suas piadas de costume. No caso desses dois apresentadores, as piadas envolvendo Bush continuam a ser inofensivas.
Quando a guerra do Iraque começou, porém, algo incomum aconteceu em programas como "Saturday Night Live" e "The Daily Show": o humor virou sério. Enquanto esses programas hoje tratam John Kerry como antes tratavam Bush, zombando do candidato democrata por características pessoais inofensivas tais como seu rosto comprido e sua voz, as piadas sobre Bush são abertamente políticas, tecendo críticas diretas à administração e suas ações.
Em dezembro passado, no "Saturday Night Live", a apresentadora do "Weekend Update", Tina Fey, ridicularizou a distribuição de lucrativos contratos de reconstrução no Iraque feita pelo governo. "Precisamos recompensar os corajosos empresários americanos que combateram com tanta bravura para libertar o Iraque do mal", disse ela. "Não esqueçamos os bravos executivos da Halliburton que invadiram Bagdá."

Uso político
Enquanto os humoristas profissionais retalham o presidente, os profissionais da política tentam usar as piadas sobre Bush em proveito próprio. Nos anos 1960, a esquerda praticamente dominava o mercado do humor ideológico.
Artistas como Lenny Bruce misturavam política com humor inteligente, fazendo a direita parecer quadrada e destituída de humor. Mas depois que Abbie Hoffman e os "yippies" (membros do Partido Internacional da Juventude, que fazia oposição à Guerra do Vietnã) desapareceram de cena, em meados dos anos 1970, a política de esquerda aderiu ao modelo sério, sensível e politicamente correto. O sucesso recente de Stewart e de gente como Michael Moore e Al Franken, autores de livros que viraram best-sellers, pode ter convencido os estrategistas democratas do valor do humor.
Piadas sobre Bush também podem acabar tornando confusas algumas questões políticas. Será que o presidente é apenas um sujeito simplório, mas filho de família privilegiada, que chegou à Casa Branca com a ajuda da sorte? Se for, então talvez não deva ser visto como responsável pelos efeitos de sua administração.
Nesse caso, com certeza ele não pode ser a inteligência sinistra responsável pela busca de domínio sobre o planeta. Para alguns espectadores, foi esse o problema do filme "Fahrenheit 11 de Setembro": se Bush é tão burro quanto o filme o retrata, como ele poderia ser responsável pela conspiração intrincada que o próprio filme atribui a ele?
"Acho que o retrato caricato de Bush como sujeito estabanado e pouco inteligente ajuda a ele mais do que a nós", diz Mike Feldman, estrategista democrata que, na condição de assessor de Al Gore em 2000, pôde testemunhar esse fenômeno em primeira mão.
"Na minha opinião, deveríamos estar falando de Bush de outra maneira, e essa visão está começando a encontrar adeptos: é a idéia de que Bush sabe exatamente o que está fazendo, age de maneira extremamente calculada e não está pensando em nosso bem-estar".
Mas talvez a maior limitação do humor sobre Bush enquanto instrumento político é o fato de seu público ser formado por pessoas já convertidas.
O humorista David Cross, que se apresentou em nome de vários grupos anti-Bush neste ano, admite: "Não tenho nenhuma ilusão de que eu vá fazer alguém mudar de idéia -a não ser que esse alguém tenha acabado de sair de um coma. Nos últimos dois anos o que eu tenho feito principalmente é pregar aos já convertidos". Mas pelo menos o coro dos já convertidos está se divertindo.


Tradução de Clara Allain


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