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São Paulo, quinta-feira, 17 de abril de 2003

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TORTURA

Bagdali conta à Folha o que passou na prisão da polícia secreta

Ex-preso em Bagdá relata seu pesadelo

Juca Varella/Folha Imagem
Na sede da antiga polícia secreta de Saddam, Karin Kadum usa venda nos olhos para mostrar como começava a sessão de tortura


SÉRGIO DÁVILA
ENVIADO ESPECIAL A BAGDÁ

São quatro lances de escada sem nenhuma luz ou ventilação que conduzem ao aposento final, localizado no topo do edifício de concreto pintado de bege.
O bagdali Karin Kadum, 38, treme enquanto vai tentando adivinhar os degraus e subindo as escadas. Lá em cima, dividida no meio por uma grade de ferro, está a sala mais temida por todos os presos desta sede da Mukhabarat, a terrível polícia secreta do regime de Saddam Hussein.
O lugar tem 5 m de comprimento por 2 m de largura. Assim que chegava, o prisioneiro tinha suas mãos amarradas para trás, era vendado e se ajoelhava. No chão, ainda hoje estão as tiras de pano usadas como venda. Sem falar nada, Kadum coloca uma nos olhos. Põe as mãos para trás e se agacha.
"Era assim", diz ele, "que começava a sessão de torturas e humilhação." A pedido da Folha, Kadum revisitou a prisão da Mukhabarat em Al Hakemiya, no bairro de classe média de Karadeh, onde ficou preso por dois anos. Seu crime, afirma, foi não querer entrar para a força de elite de assassinos a mando de Saddam, para o qual foi convocado pela polícia secreta.
"Como eu poderia matar alguém que nem conheço e sem nem sequer saber o motivo?", pergunta. Os que eram levados para lá por se recusarem a seguir ordens sofriam punições que incluíam ter dentes arrancados a sangue frio, a carne rasgada por furadeiras, levar choques nos genitais e passar a noite sem roupa dentro de refrigeradores.
Muitos viam ainda as mulheres ou filhas trazidas diante de si e sendo estupradas pelos policiais. Como a maioria, Kadum não passou por julgamento. Também não podia receber a visita de familiares; um aviso na porta principal do prédio diz: "Proibida a entrada, sob pena de morte".
As organizações de direitos humanos colocavam o Iraque de Saddam entre os cinco piores países do mundo na questão. Durante as quase três décadas da ditadura, pelo menos 200 mil pessoas desapareceram, a maioria depois de passar por prisões como esta. As acusações eram as mesmas: ou eram "inimigos do regime" ou eram "colaboradores dos EUA".
Um dos principais instrumentos de repressão do ex-ditador era a Mukhabarat, comandada por seu meio-irmão Barzan Ibrahim Hasan Al Tikriti e com um efetivo de 9.000 homens, a maior parte oriunda da aldeia de Al Bu Nasser, perto de Tikrit, assim como os próprios Saddam e Barzan.
Desde a queda de Bagdá, milhares de pessoas passaram a percorrer estas instalações em busca de informações sobre desaparecidos. Muitos esperavam achar o parente vivo. Outros sabiam que era impossível. "Quem entrava aqui sabia que não sairia", diz Kadum.
Há relatos de presos que ficaram dez anos sem sair de um quarto escuro. Outros falam de prisioneiros que tinham de dormir todas as noites em gavetas metálicas no formato dos frigoríficos de necrotério. Kadum diz que por sorte não passou por isso.
"Eles só me colocaram numa cela toda fechada, de 5 metros por 2 metros, com outros 20 presos", conta. "Nós nos revezávamos para dormir e ir ao banheiro, que era um buraco no chão cavado no fundo." A comida era servida uma só vez -pão e tâmaras.
Nas portas, os presos gravavam à unha o nome, a idade e as memórias. Kadum mostra a sua. Do escuro dos corredores começam a aparecer outros homens, assustados, que se aproximam do repórter e querem também contar sua história. Uns estão lá porque foram levar a família para ver onde ficaram. Outros precisam confirmar que tudo está vazio, que seus ex-carcereiros fugiram e que a Mukhabarat não existe mais.
Radi Ali, 35, falou mal de Saddam na frente de amigos. Em menos de uma semana, foi detido e trazido para cá, onde ficou por seis meses sendo interrogado e torturado. Mostra sua cela, número 25. "Éramos 20 pessoas aqui e todos pegamos a mesma doença de pele", lembra. A seu lado, um homem grisalho que não quis dar o nome conta seu caso: sua irmã de 12 anos foi presa por ter o hábito difundido entre as mulheres árabes islâmicas de cobrir o rosto. "O serviço secreto de Saddam odiava as mulheres que cobriam a cara", lembra ele. "Achavam que elas estava escondendo algo."
Quando veio perguntar sobre as condições de sua parente, ele também foi preso. A acusação: quis saber demais. Ficou dois anos em Al Hakemiya. Está lá para ver se acha sua ficha e consegue o nome de seus torturadores. Quer encontrá-los e perguntar o porquê de tudo isso, mas talvez também se vingar. "Muitos vão morrer."
No primeiro andar, uma sala em que eram guardadas as fitas com os interrogatórios foi saqueada. O subsolo foi tomado por água, que impede a passagem para a maior parte dos cômodos que se espalham por lá. Alguns ainda são acessíveis, um deles com várias luvas cirúrgicas, seringas descartáveis e vidros.
Mas Kadum já está na porta da frente do prédio, andando a passos rápidos em direção ao seu carro. "Chega", diz ele, e sai.


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