São Paulo, quarta-feira, 17 de maio de 2006

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ANÁLISE

Guerra ao terror atropela Constituição

CORINE LESNES
DO "LE MONDE", EM WASHINGTON

Cerca de mil americanos foram presos durante a Primeira Guerra por ter defendido idéias pacifistas. Os habitantes de origem alemã foram proibidos de entrar em Washington ou de ficar a menos de 5 km da costa, e 6.000 deles foram detidos. Durante a Segunda Guerra, 40 mil japoneses e 70 mil americanos de origem japonesa foram encerrados em campos, atendendo à decisão do presidente Roosevelt. Nos anos 50, os comunistas foram perseguidos em nome da Guerra Fria. Em cada ocasião, as instituições judiciárias dos EUA, incluindo a Suprema Corte, confirmaram as decisões tomadas pelo Executivo. Do ponto de vista dos historiadores, a resposta dos EUA aos ataques de 11 de setembro de 2001 contra seu solo se inscreve numa tendência clássica. Eles enxergam nela a herança de uma lei de 1798 (a Lei dos Estrangeiros Inimigos), que nunca chegou a ser abolida. Essa legislação confere ao presidente o poder de deter, sem mandato judiciário, "estrangeiros inimigos" originários do país em conflito.


Como nas Guerras Mundiais, a Casa Branca evoca a segurança nacional para legitimar atentados à Constituição

"Em tempos de guerra, sempre acabamos por nos desviar para o lado do medo, em lugar de ouvir as exigências da Constituição", lamenta Cynthia Harrison, professora de direito da Universidade George Washington. Hoje a Justiça anda mais crítica. Em 2003 a Suprema Corte voltou sua atenção à constitucionalidade da detenção de "combatentes inimigos" em Guantánamo. Ela apresentou um parecer oposto ao do governo. A juíza Sandra Day O'Connor resumiu a opinião da maioria da corte com uma frase que fez manchetes: "Um estado de guerra não é um cheque em branco". Para o advogado David Cole, professor da Universidade Georgetown, foi a Guerra do Vietnã que criou uma ruptura.
"Ela fortaleceu um certo número de instituições", ele estima. "A própria Suprema Corte opôs resistência ao presidente Nixon. Ela percebeu que ganhara prestígio junto ao público." Outro contrapeso: as associações de defesa das liberdades, que se multiplicaram. Uma delas, a Electronic Frontier Foundation (fundação fronteira eletrônica), fez uma denúncia em janeiro que lhe permitiu descobrir que a empresa telefônica AT&T havia passado os dados telefônicos de milhões de americanos à Agência Nacional de Segurança, o órgão de espionagem eletrônica dos EUA. Como fez Roosevelt em 1942 no caso dos japoneses, o presidente Bush evoca "os poderes do Executivo em tempos de guerra". O Congresso e a Justiça tendem a dobrar-se diante da vontade presidencial.
"Comandante-em-chefe: esse é o termo mágico", disse o constitucionalista David Cole, um dos principais críticos da administração Bush. O edifício jurídico nacional se ergue sobre o alicerce desse termo "guerra", que é defendido pelos americanos de maneira intransigente. "Não querer chamar esse conflito de guerra é ridículo e até mesmo perigoso", opina James Carafano, da Heritage Foundation, um círculo de reflexões conservador. "É enviar um sinal de fraqueza a Bin Laden." O pesquisador dá o exemplo da Guerra Fria. "Nós a ganhamos em 1947", declara, "no dia em que ela começou, porque dissemos: isso vai durar o tempo que for preciso, mas nós não mudaremos nossa posição." Para David Cole, o terrorismo cria um desafio diferente, já que torna obrigatório o "pensamento preventivo", antes que o ataque seja lançado. Seja nos interrogatórios ou nas transferências de suspeitos no exterior, a administração Bush adapta à Justiça o conceito de "ação preventiva". Para Cole, nesse percurso o governo sacrificou alguns princípios constitucionais, como o da igualdade dos cidadãos.
"Antes, o dilema era sacrificar nossas liberdades em nome de nossa segurança. Aqui, a administração nos propõe algo mais interessante: vamos sacrificar a liberdade de qualquer um em nome de nossa segurança", explica. Imediatamente após os atentados de 2001, 5.000 muçulmanos foram presos, sendo que 80 mil outros foram presos e fichados pela polícia. Nenhum foi condenado pelas leis antiterroristas. Os conservadores da Heritage Foundation não enxergam "ameaça grave aos direitos constitucionais" na resposta da administração.
"Que tal entregarmos 5.000 terroristas aos europeus e ver o que eles farão?", sugere Carafano. Apesar disso, ele reconhece que a administração Bush errou ao tentar ignorar o princípio segundo o qual toda pessoa privada de liberdade tem o direito de falar com um juiz. "Se erodimos as liberdades, destruímos a confiança que os cidadãos depositam na sociedade. A idéia de que é preciso sacrificar as liberdades em nome da segurança é uma visão preguiçosa", ele considera. "O dever dos governos é maximizar as duas coisas." À esquerda, os juristas se inquietam diante da envergadura assumida pela lei de "apoio material", ou seja, a assistência que um indivíduo tenha eventualmente fornecido a um suspeito. Essa legislação, dita antiterrorista, foi adotada em 1996, um ano após o atentado de Oklahoma City, que fez 168 mortos. Antes do 11 de Setembro, duas ações judiciais foram abertas sobre o assunto. Desde então, já foram centenas.
"Faz parte da mentalidade de "como os vamos capturar?'", explica David Cole. Para isso, é preciso ampliar as leis. Ele cita um caso extremo: "Um estrangeiro que enviasse cadernos de desenhos para colorir à creche de um movimento declarado terrorista poderia ser processado, mesmo se os cadernos fossem usados unicamente por crianças de três anos".

Tradução de Clara Allain


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