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São Paulo, domingo, 17 de agosto de 2003

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"Feridas devem continuar abertas", diz escritor chileno

ROGERIO WASSERMANN
DA REDAÇÃO

A proposta do presidente chileno, Ricardo Lagos, para revisar as questões pendentes sobre os crimes cometidos pela ditadura de Augusto Pinochet (1973-89) é positiva, mas não se deve, com isso, querer fechar as feridas abertas pelos abusos do período.
A avaliação é do escritor chileno Antonio Skármeta ("O Carteiro e o Poeta"), um dos milhares de vítimas da ditadura. Ele foi obrigado a se exilar, no período, na Alemanha, para onde voltou em 2000, desta vez como embaixador chileno no país -função que exerceu até este ano. "Não podemos ter a frivolidade de fechar uma ferida que não está fechada na alma", diz. "Tomara que, ainda que passem gerações, a atrocidade fique viva, para que ela siga, luminosamente, sendo algo que machuque os olhos, que irrite."
Skármeta, 62, esteve anteontem em São Paulo para uma palestra no instituto Itaú Cultural, no qual lançou também os livros "A Garota do Trombone" e "A Redação" -este último, voltado ao público infanto-juvenil, mostra o período da ditadura sob o olhar de um menino. "A Redação" ganhou o prêmio Unesco 2003 de Literatura Infantil e Juvenil em Prol da Tolerância. Após uma seção de autógrafos, Skármeta falou à Folha.

Folha - Como o sr. vê a proposta do presidente Ricardo Lagos para investigar os crimes da ditadura?
Antonio Skármeta -
É muito importante qualquer iniciativa para consolidar a paz e fazer justiça aos familiares de detidos e desaparecidos. Mas temos de fazer um esforço para conseguir aproximar os protagonistas da tragédia chilena. O tempo e a prática da democracia vão suavizando as divisões. Um exemplo muito claro: Pinochet, no Chile, já há anos está isolado.

Folha - Pinochet não é mais um tema da política chilena?
Skármeta -
É um tema mundial, porque é uma questão moral e de ética judicial que segue muito forte. Mas, na política interna chilena, Pinochet está isolado. Porque a direita chilena se modernizou. É agora uma direita moderna, que entende que suas melhores oportunidades estão dentro do jogo democrático. Afastando-se de Pinochet, conseguiu uma importante votação e mantém aspirações inclusive de ganhar a Presidência nas próximas eleições.

Folha - A reabertura das investigações não pode fazer voltar essas divisões, com reação daqueles que forem afetados por elas?
Skármeta -
Pode ser. Mas temos de tentar. É um tema muito sensível, muito complicado. E, em muitos anos, se fez muito pouco. As investigações nas quais se descobriram os culpados não resultaram em condenações. São muito poucos os que foram presos. Inclusive as penas são suaves pelos crimes que cometeram. Por isso, a iniciativa de Lagos é importante, assim como a iniciativa da direita, que apresentou um plano de indenizações para as vítimas.
De qualquer forma, acho que as pessoas devem se aproximar, mas não temos de fechar nenhuma ferida. Uma ferida aberta é uma permanente fonte de meditação e de dor. Não podemos ter a frivolidade de fechar uma ferida que não está fechada na alma.
Não convém fechar artificialmente. Deve-se tentar fazer, mas sem pôr limites e datas nem firmar um compromisso. Por exemplo, uma anistia total para os criminosos viola a carta fundamental de direitos humanos.
Por isso, valorizo todas as iniciativas, mas temos de aceitar também que haja resistência, que as pessoas queiram mais. Que queiram mais justiça, mais verdade, mais indenizações.

Folha - Serão necessárias gerações para que isso seja superado?
Skármeta -
Tomara que, ainda que passem gerações, a atrocidade fique viva, para que ela siga, luminosamente, sendo algo que machuque os olhos, que irrite. Não temos por que nos condenarmos a uma vida cômoda e frívola.
Nesse sentido, a arte chilena, como o cinema ou a literatura, trabalha também com essa verdade. Não tanto programaticamente. Mas lhe dou um exemplo: eu conheço uma garota em uma festa, que me seduz, é inteligente, belíssima. Eu, como homem apaixonado, quero me relacionar com ela. Convido-a para, no próximo sábado, irmos a um café. Quero levá-la ao cinema, conversar e, se for possível, ir a um motel.
Mas, no sábado, vou ao café, e a garota não chega. Ligo para sua casa, e a mãe diz que não sabe onde ela está. Na segunda-feira sabemos que foi presa. Uma semana depois, seu cadáver é encontrado jogado em uma fossa.
Eu queria viver uma vida normal, estava apaixonado. Queria ver um filme, sair para dançar, queria amar. Eu queria essa garota. Mas acontece que a ditadura se meteu no meio. É por isso que a ditadura aparece em minha obra, como na de tantos outros escritores. É parte do drama.
Todas as vidas são dramas. E todas as vidas em algum momento encontram dificuldades. A América Latina encontrou uma dificuldade imensa, coletiva. E essa dificuldade coletiva se meteu na alma, na mais profunda intimidade das pessoas.
Não acho que nenhum colega diga que faça literatura política. A política é que agregou um elemento trágico à nossa literatura. E, inclusive, deve-se agradecer que a maioria dos escritores ainda consiga tratar desses temas com ironia, com humor. A fantasia, a magia, são uma força libertária. E quem sofreu, quando lê, sente um tipo de emoção estética especial.

Folha - O fato de o sr. escrever sobre o período da ditadura é um reflexo dessa intenção, de manter a memória viva e não fechar a ferida?
Skármeta -
Lamento dizer, mas não escrevo para algo, crio personagens individuais, com suas pequenas histórias privadas, que se vêem envolvidos na grande história pública. Não uso meus personagens para provar nem para denunciar nada.

Folha - Não é contraditório tratar de um tema pesado como a ditadura em um livro infanto-juvenil?
Skármeta -
Eu tenho uma grande confiança no instinto pela liberdade. Em minha obra, acho que a liberdade não é algo com que se nasce. É algo que se deve conquistar dia a dia. Acho também que a literatura é um grande exercício de liberdade, frente às imagens domesticadas, reiteradas e comerciais que nos oferecem. A literatura é uma contínua insurreição em favor da liberdade.




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