São Paulo, Domingo, 17 de Outubro de 1999
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RELIGIÃO
Livro traz pesquisa nova sobre omissão do papa diante dos crimes nazistas; Vaticano nega acusações
Santificação de Pio 12 é contestada

ANDREW GUMBEL
do "The Independent"

Numa viagem à África no ano passado, perguntaram ao papa João Paulo 2º o que ele achava de um de seus predecessores, Pio 12, que ocupou o cargo durante a Segunda Guerra (1939-45). "Ele era um grande papa", respondeu. Tão grande que o Vaticano está tocando com a maior rapidez o processo de santificação do pontífice.
Mas existe uma visão oposta sobre Pio 12: ele teria falhado por não ter condenado o crime mais desprezível do século, o Holocausto.
Historiadores, sobreviventes do Holocausto, católicos liberais e gente do próprio Vaticano que defendem essa tese estão chocados com a pouca atenção de João Paulo 2º. Ele instruiu dois estudiosos a analisar as evidências de "virtudes heróicas" de Pio 12 e preparar um relatório recomendando sua santificação.
Enquanto isso, estudiosos judeus trabalham dia e noite para descobrir novos documentos indicando que houve tanto um pacto de silêncio sobre o massacre de judeus como uma oposição à fundação de Israel após o final da guerra. Na época, o governo israelense pediu que o Vaticano adiasse o processo de beatificação por no mínimo 50 anos em respeito aos sobreviventes do Holocausto.
Até agora, o papa tem descartado com ênfase os protestos, censurando os israelenses por supostamente interferir nas questões internas do catolicismo e desprezando as acusações de cumplicidade com o nazismo, dizendo que se trata de incapacidade de compreender "as sutilezas diplomáticas do pontífice".
Segundo esse argumento, se Pio 12 não se pronunciou sobre o Holocausto, foi para melhor proteger os judeus e a integridade da Igreja Católica alemã em uma época marcada por um perigoso sentimento anti-religioso.
Mas uma biografia recém-lançada lista novas evidências do envolvimento de Pio 12 com a ascensão do nazismo e indica que ele tinha, entre outras deficiências políticas e morais, uma forte inclinação anti-semita.
Escrito por John Cornwell, o livro "O Papa de Hitler: A História Secreta de Pio 12" já é tema de debate acirrado. Seus dois grandes méritos são trazer à tona material inédito de dentro do Vaticano e ter sido escrito por um católico inglês que fez a pesquisa inicialmente para livrar Pio 12 das acusações que lhe eram imputadas.
A determinação de limpar o nome de Pio 12 deu-lhe acesso exclusivo a arquivos sob a tutela de jesuítas e do Secretariado de Estado do Vaticano. No meio da pesquisa, porém, ele viveu uma crise moral. "O material que eu havia reunido, fornecendo uma visão mais ampla de Eugenio Pacelli (nome de batismo de Pio 12), levava não a uma exoneração, mas a um maior indiciamento", escreve.
O livro detalha como Pio 12 impediu a publicação de uma encíclica editada por seu predecessor, Pio 11, à beira da morte, que tinha como objetivo condenar o anti-semitismo nazista, evitou qualquer menção específica ao Holocausto mesmo sabendo sobre o processo desde 1942 e não se pronunciou sobre a detenção de mais de mil judeus de Roma em outubro de 1943.
Cornwell reúne ainda informações para mostrar que muitas das histórias contadas nos últimos 50 anos sobre os esforços de Pio 12 para ajudar vítimas da perseguição nazista eram exageradas ou sem fundamento.
Ele descreve Pio 12 como um diplomata e advogado determinado do Vaticano que, desde o início de sua carreira, pôs-se a estabelecer a autoridade absoluta de Roma sobre os povos católicos da Europa por meio de uma série de acordos com regimes autocráticos.
Tendo trabalhado como embaixador do papa nos anos 20, antes de tornar-se diplomata-chefe, Pacelli encontrava-se em uma posição única para negociar o poder da igreja com os nazistas.
O acordo que foi firmado garantia a influência católica sobre a educação e a vida espiritual na Alemanha, mas com um preço alto: a dissolução do Partido Central Católico, que representava o último obstáculo para Hitler alcançar o poder absoluto no país. Todas as tentativas de resistência promovidas por bispos católicos alemães foram abortadas.
O chamado "Reichskonkordat", firmado entre o Vaticano e a Alemanha, deu aos nazistas a primeira chance de reconhecimento internacional e, segundo o discurso de Hitler em uma reunião de gabinete logo após o acordo, abriu caminho para empreender "a luta urgente contra o judaísmo internacional".
O acordo foi celebrado na catedral de Santa Edwiges, em Berlim, com suásticas colocadas ao lado das bandeiras católicas e o "Horst Wessel", o hino informal dos nazistas, tocando em alto-falantes para os milhares de alemães que se reuniam do lado de fora.
Cornwell mostra que a atitude de Pio 12 com os judeus era no mínimo ambígua. Reproduz cartas do início de sua carreira na Alemanha em que o futuro papa descarta favores à comunidade judaica e descreve a divisão de Munique do Partido Comunista Alemão como "caótica, corrupta e cheia de judeus". Pio 12 ainda se refere com displicência a "um grupo de moças, de aparência dúbia, judias como todo o resto," e descreve o líder comunista Max Levien como "um judeu, pálido, sujo, de olhos entorpecidos, voz rouca, vulgar, repulsivo".
Quando soube do extermínio de milhões de judeus durante a Segunda Guerra, Pio 12 fez apenas uma vaga referência ao massacre em sua mensagem no Natal de 1942 -omitindo qualquer menção ao anti-semitismo ou aos judeus-, concentrando-se no desenvolvimento interior do homem e citando um filme chamado "Pastor Angelicus" para falar de sua natureza "reflexiva, contundente e ascética".
"É muito triste ver que a autoridade moral de Sua Santidade, que Pio 12 e seus predecessores transformaram em um poder mundial, está seriamente reduzida", escreveu Francis D'Arcy Osborne, embaixador britânico do papa na época, em uma carta descoberta por Cornwell.
O Vaticano reagiu ao livro com a costumeira cautela, rejeitando-o sem entrar no mérito de seus argumentos. Pierre Blet, jesuíta francês que ajudou a compilar os 12 volumes de documentos que embasaram a escolha de Pio 12 para o posto de papa, taxou a pesquisa de Cornwell de "aistórica" e afirmou, sem convencer, que a dissolução do Partido Católico não alterou a situação porque Hitler já estava no poder.
"As novidades não mudam nada porque vão de encontro ao desejo do Vaticano de se concentrar no que diz respeito à devoção do candidato a santo", diz Giancarlo Zizola, influente escritor e historiador católico. "A candidatura está sendo preparada, mas acho provável um adiamento."
Além do empecilho à santificação de Pio 12, as novas informações têm outra grande implicação nos dias de hoje.
Sob muitos aspectos, Karol Wojtyla, o atual papa, toma Pio 12 como seu modelo, contribuindo para um retrocesso na tendência progressista do Conselho Vaticano 2º, tentando restabelecer a igreja como uma instituição centralizada e autocrática, que não tolera dissidências.


Tradução de Thiago Stivaletti

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