São Paulo, domingo, 17 de dezembro de 2000

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DEPOIS DO IMPASSE

Polêmica sobre cédulas de votação defeituosas indica a ausência de discussão relevante na campanha

EUA sofrem de ausência de debate político

JOSÉ ARBEX JR.
ESPECIAL PARA A FOLHA

O festival de "trapalhadas" que caracterizou as eleições presidenciais nos Estados Unidos foi apenas um sintoma visível da profunda crise de seu sistema democrático.
A crise não tem nada a ver com o fato de a decisão do Colégio Eleitoral supostamente contrariar a "vontade do povo" ao eleger George Bush. Isso é bobagem, como se verá.
O coração do problema reside na ausência de qualquer debate político substantivo entre George W. Bush e Al Gore. A disputa pós-eleitoral foi praticamente reduzida a uma discussão patética sobre o funcionamento de máquinas de perfurar cartões.
O sistema representativo dos EUA não é "defeituoso". É federalista. Os Estados que integram a Federação americana têm grande autonomia em relação ao poder central. Por exemplo, há Estados, como Califórnia ou Nova York, em que o aborto é permitido e a pena de morte foi abolida. Outros Estados aplicam a pena de morte e proíbem o aborto, como o Texas.
É por isso que a indicação do poder central, nos EUA, passa, necessariamente, pelo filtro da representação regional, cuja expressão maior é o Colégio Eleitoral (isto é, a representação da vontade somada de cada Estado da federação).
O fato de o presidente ser eleito pelo Colégio Eleitoral é o resultado coerente e democrático de um sistema segundo o qual o poder central é uma somatória das vontades de cada unidade da Federação.
Não há nenhum "paradoxo", desse ponto de vista, no fato de o colégio expressar um resultado distinto daquele que seria eventualmente revelado pelo voto direto. Não é por essa eventual e suposta "discrepância de vontades" que a democracia americana está em crise, mas sim pela despolitização do debate.
O "segredo" da longevidade da democracia americana sempre foi o respeito ao pluralismo político e o estímulo ao debate (o sistema de "checks and balances"). Isso funcionou desde a fundação do país, como atestam as famosas polêmicas entre Alexander Hamilton e Thomas Jefferson. Hamilton era partidário de um Estado eficiente, que colocava a ordem, a disciplina e a produção acima de tudo. Jefferson, autor da Declaração de Independência, enfatizava os direitos individuais e a democracia e temia o poder financeiro. É de Jefferson a frase: "Temo pelo meu país quando penso que Deus é justo."
A politização da vida pública atingiu um momento de auge nas eleições de 1932, quando o debate se concentrou sobre as medidas que deveriam ser adotadas para tirar o país da Grande Depressão.
O democrata Franklin Delano Roosevelt apresentou um programa diametralmente oposto ao do presidente republicano Herbert Hoover, seu rival na disputa pela Casa Branca e adepto do liberalismo econômico.
Roosevelt propôs o "New Deal" (novo pacto): o governo federal comprometia-se a realizar um vasto programa de ajuda aos agricultores e aos mais prejudicados pela crise, de obras públicas para gerar empregos e de subsídios para assegurar o bem-estar social.
Foi um ponto de inflexão na história americana. O país capitalista por excelência preparava-se para fazer grandes concessões de natureza social.
Graças ao extraordinário sucesso do "New Deal", Roosevelt foi eleito quatro vezes à Presidência. O Estado do Bem-Estar Social fez da América a nação mais próspera do planeta, com um índice de distribuição de riqueza muito menos concentrado do que a imensa maioria dos outros países (incluindo, obviamente, o Brasil).
Mas o "New Deal" começou a ser enterrado nos anos 80, pela "era Rambo/Reagan", que impôs a moldura do neoliberalismo ao conjunto das instituições econômicas e financeiras internacionais.
Nos anos 90, a extraordinária expansão da economia americana, graças à globalização, liquidou qualquer discussão entre a elite americana. O discurso neoliberal foi adotado tanto por Bush quanto por Gore.
O consenso da elite tem como contrapartida um processo de brutal concentração de renda. O economista John Kenneth Galbraith fala da "brasilianização" dos Estados Unidos, não porque os americanos tenham adotado o samba e o futebol, mas porque é crescente a injustiça social naquele país (hoje, 12% dos americanos vivem na pobreza, apesar da opulência da economia). É precisamente a força desse consenso das elites que ameaça o equilíbrio democrático.
Claro que esses sintomas não apareceram agora. A crescente abstenção da sociedade em relação ao processo eleitoral, visível desde os anos 80, denuncia a despolitização da vida pública. A busca de alternativas no quadro da disputa política institucional aparece apenas de forma muito tortuosa, na candidatura de um Ralph Nader, do Partido Verde, que fala em nome dos "consumidores" e não dos "cidadãos".
O escritor Gore Vidal, crítico da cultura americana, nota que nos Estados Unidos a "vocação imperial", que aparece na ideologia do "Manifest Destiny" (o suposto "destino manifesto" de ser o país o primeiro entre as nações), só pode ser refreada pela sua "vocação republicana" e democrática. Se a democracia desaparecer, diz Vidal, o império liquidará a república. Nos termos de sua metáfora, a derrota dos Estados Unidos no Vietnã foi, de fato, uma vitória da república sobre o império.
Também identificando as duas tendências, o historiador Arthur Schlesinger Jr., ex-assessor de John Kennedy, sustenta a tese de que a história americana é moldada por ciclos: governos "liberais" e "sociais" se alternam no poder, produzindo, em escala histórica, um sistema eficaz de auto-regulagem. Ora, o que está em questão hoje é até mesmo essa democracia limitada ao mero jogo de alternância no quadro das elites.
A única possibilidade de revitalização da democracia reside na capacidade de articulação das organizações nacionais e populares, como as que se manifestaram, em Seattle, contra a Organização Mundial do Comércio.
A república já derrotou uma vez o império, no Vietnã. E a história, ao contrário do que pretende Francis Fukuyama, não tem fim.



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