São Paulo, domingo, 17 de dezembro de 2000

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Pensador do século 19 explica a América de Bush

MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO

O pensador francês Alexis de Tocqueville (1805-1859) escreveu "A Democracia na América" (a primeira parte foi publicada em 1835, e a segunda, em 1840), um dos maiores clássicos sobre a sociedade norte-americana de todos os tempos, que ajuda a esclarecer alguns dos mistérios atuais do sistema democrático do país.
Certos aspectos de seu livro estão hoje datados, e seu otimismo quanto ao futuro da sociedade dos EUA tem de ser colocado no contexto da época. Contudo diversas características da democracia norte-americana apontadas por ele ainda são verdadeiras.
Assim, a eleição do republicano George W. Bush e a sociedade norte-americana atual podem ser analisadas à luz de seus ensinamentos, guardadas as devidas proporções. Por exemplo, para o "tocquevillista" francês Eric Keslassy, o modo como Bush se elegeu poderia chocar Tocqueville.
De acordo com o pensador, que era de origem aristocrática, o fator gerador da democracia norte-americana era a crença na igualdade de condições, diferentemente do que acontecia no Antigo Regime europeu. Afinal, havia um alto grau de igualdade entre os imigrantes, as diferenças sociais não eram tão grandes como hoje, e as pessoas eram respeitadas segundo seu intelecto e sua virtude.
Em 1831, quando visitou os EUA com o pretexto de estudar as reformas de seu sistema penitenciário -à época considerado um dos mais humanos do mundo-, o aristocrata francês constatou que o consentimento individual era a base da igualdade de condições. Mas também percebeu que, se não fosse moderada, a democracia, apesar de natural, poderia destruir a natureza humana.
Isso por três razões. Primeiro, ela recria o estado de natureza, descrito por Hobbes como a condição do ser humano antes do advento da vida em sociedade, pois o individualismo exacerbado acaba destruindo os alicerces da própria vontade de igualdade.
À luz da crise jurídico-eleitoral que os Estados Unidos atravessaram há pouco, esse aspecto da teoria de Tocqueville ainda pode ser aplicado. O fato de que milhares de votos da Flórida não tenham sido levados em consideração no resultado final do escrutínio por si só já seria grave, porém a razão pela qual eles não foram computados evidencia ainda mais a atualidade do pensamento do aristocrata francês.
Num acesso de individualismo exacerbado, inúmeros republicanos deixaram de pensar no que poderia ser melhor para o país e fizeram todo o possível para impedir a recontagem manual de cerca de 44 mil votos duvidosos. Vimos os advogados de Bush lutarem para que a vontade do eleitor, embora protegida pela Constituição da Flórida, não fosse conhecida.
"Tocqueville era um defensor do federalismo. Assim, o fato de que a Constituição da Flórida não tenha sido respeitada certamente não lhe agradaria", afirmou à Folha, por telefone, Cheryl Welch, doutora em ciência política e autora do livro "De Tocqueville", que será publicado no início de 2001.
Em segundo lugar, para o pensador francês, a democracia difunde a inveja, que corrói qualquer regime, já que, dentro de um contexto no qual o ideal é igualitário, os menos abastados tendem a cobiçar o sucesso dos mais ricos, sobretudo numa sociedade em que, como definiu Tocqueville, "o amor pelo dinheiro tem forte influência sobre o coração dos homens" e "um grande desprezo é expresso pela teoria da igualdade de propriedade permanente".
Terceiro, o ideal democrático exclui a superioridade natural da razão e da virtude, pois, enquanto aristocrata, Tocqueville acreditava que um Legislativo formado por membros eleitos pela população poderia não contar com as pessoas mais aptas a fazer leis.
Ora, a atuação do Legislativo da Flórida, que estava pronto para escolher seu próprio grupo de delegados para o Colégio Eleitoral se o caso não tivesse sido resolvido pelo Supremo federal, deixa poucas dúvidas de que a maioria republicana talvez não seja composta pelas pessoas mais razoáveis e virtuosas do Estado.
Tocqueville criou uma fórmula para tornar a democracia mais moderada e evitar seus excessos. Segundo ele, um artifício político tinha de ser utilizado para livrar a democracia norte-americana de "seus instintos naturais".
Para tanto, instituições mediadoras, sobretudo religiosas -mas também comerciais ou políticas-, devem se interpor entre o poder central e o indivíduo. Afinal, essas instituições inserem o cidadão na vida associativa, retirando-o de seu isolamento, e podem ensinar-lhe o significado da cidadania democrática. As leis e as instituições governamentais devem, portanto, respeitar e incentivar a vida associativa.
Tocqueville previu em 1835, entretanto, que essas instituições podiam impregnar-se da igualdade individualista. Ele não podia prever, porém, que a religião não mais seria um fator tão forte de aglutinação social no final do século 20, como era à época (apesar de vários atores sociais ainda manterem uma fé inabalável), e que associações políticas e comerciais acabariam contribuindo para o individualismo e a inveja.
Na esfera política, os dois principais partidos dos EUA continuam sendo, sem dúvida, aglutinadores, porém não mais pensam no bem comum como uma premissa, deixando-se levar por interesses ideológico-corporativos. No que diz respeito ao mundo dos negócios, o número de associações do gênero só faz aumentar, contudo dentro de um universo no qual tirar vantagem individual é um comportamento incentivado, se não necessário.
O pensador constatou ainda que havia nos EUA uma massa de cidadãos iguais, completamente absorvidos pela busca de seu próprio conforto e bem-estar material. Acima deles, existia um imenso poder protetor, que lhes garantia segurança e felicidade.
Com isso, segundo Tocqueville, o livre-arbítrio se tornava cada vez menor. Isso acontecia porque a população, enquanto entidade soberana, pensava que as políticas do governo representavam sua própria vontade. Ele previu que isso minaria a habilidade de exercitar o direito de escolha e até a de pensar livremente.
Ora, hoje a situação mudou, e cada um tem de descobrir a melhor maneira de sobreviver, pois o Estado não é mais tão "imenso" como à época. Porém, diante da miríade de possibilidades de escolha, o cidadão se vê perdido, e o resultado final da eleição presidencial demonstrou que, apesar de divididos, os norte-americanos não viam muita diferença entre os dois principais candidatos.
No entanto um dos aspectos mais atuais da obra de Tocqueville diz respeito às leis eleitorais. Para ele, as eleições nos EUA raramente geravam crises violentas, como ocorria na Europa -nos países em que elas existiam-, mas, frequentemente, elas desencadeavam um estado de inconstância e agitação.
O pensador francês salientou, porém, que, como a população fazia parte do processo de criação das leis, pois elegia diretamente seus legisladores, elas tinham uma força moral maior. O respeito pela opinião e pela vontade da maioria era, assim, crucial.
Três fatores faziam com que as leis mantivessem a democracia nos EUA: o federalismo, as instituições mediadoras -que moderavam o despotismo da maioria- e a organização da Justiça, cujos representantes, por terem mandato longo, encontravam-se isentos de influência política.
A decisão final do pleito presidencial deste ano levanta dúvidas quanto à validade do último aspecto. Cinco juízes conservadores acabaram decidindo a disputa e dando a Bush a Presidência, o que, no mínimo, gera dúvidas quanto a sua imparcialidade.
"Creio que Tocqueville teria interpretado o desfecho do caso e a eleição de Bush como um golpe de Estado, pois ele usou a Justiça e a Constituição para chegar ao poder. A decisão da Suprema Corte federal, que deu a vitória ao candidato republicano, teria sido vista por ele como um compromisso político-partidário, que não teria acontecido se a corte fosse realmente independente", afirmou à Folha, por telefone, Keslassy.
Não deixa de ser irônico em relação às convicções de Tocqueville, finalmente, que o governador do Estado que mais condena à morte nos EUA -o Texas-, cujo sistema carcerário é um dos menos humanos do mundo desenvolvido, deva assumir a Presidência em 20 de janeiro. O pensador, se ainda fosse vivo, certamente teria algumas considerações a tecer sobre isso.


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