São Paulo, domingo, 17 de dezembro de 2000

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VIOLÊNCIA SEXUAL

Um milhão de mulheres são violentadas a cada ano, e o país não consegue mais esconder o problema

África do Sul vive "epidemia" de estupros

MÁRCIA DETONI
DA REDAÇÃO

Os números são alarmantes. A cada 31 segundos, uma mulher é estuprada na África do Sul. O Instituto Nacional para a Prevenção de Crimes e Reabilitação e a Universidade da África do Sul calculam que cerca de 1 milhão de mulheres são estupradas por ano. Trata-se da maior incidência de estupros do mundo.
A violência sexual castiga a África do Sul há décadas, mas só agora o país está rompendo o silêncio em torno do assunto. Foi preciso que a jornalista sul-africana Charlene Smith, 43, fosse estuprada no ano passado, em Johannesburgo, para que a sociedade começasse a encarar o problema de frente.
Ao chegar em casa à noite, depois do trabalho, Charlene encontrou um homem escondido no banheiro. Armado com uma faca, ele atou as mãos de Charlene, tampou a boca da jornalista com fita adesiva, levou-a para o quarto e a estuprou sobre a cama. Depois fugiu, ameaçando voltar se ela contasse o caso para alguém.
Charlene fez o que nenhuma mulher sul-africana havia tido coragem de fazer até então: colocou a boca no trombone. Contou o seu drama nos jornais, nas emissoras de rádio e televisão, em palestras por todo o país. Fez com que a "epidemia" de estupros na África do Sul virasse manchete e entrasse na lista dos grandes problemas nacionais.
"Antes disso a questão nunca tinha sido debatida. Havia apenas notícias esporádicas na imprensa sobre um ou outro caso de estupro, porque a mídia não conseguia ninguém para falar sobre isso", disse Charlene à Folha, em entrevista por telefone.
"Denunciar o estupro foi mais fácil para mim do que é para outras mulheres. Eu já era uma jornalista respeitada, tinha acesso à mídia, sabia como escrever e como falar", contou Charlene, que desde então vem fazendo campanha para que as sul-africanas denunciem a violência sexual.
Lisa Vetten, do Centro de Estudos sobre Violência e Reconciliação da África do Sul, disse à Folha que a maioria das vítimas de estupro tem medo de denunciar o crime por causa do machismo da sociedade.
"As pessoas frequentemente tentam culpar a mulher, criticando as roupas que ela usa, a forma como caminha, o fato de ela aceitar que um homem lhe pague uma cerveja. Isso faz com que as vítimas se calem", disse Vetten.
Uma pesquisa realizada recentemente pela autoridades locais de Johannesburgo revelou que 1 em cada 4 entrevistados havia estuprado uma mulher antes de ele completar 18 anos. Entre os homens que cometeram o estupro, 80% disseram que "as mulheres pediram por isso", pela forma como se comportavam ou estavam vestidas.

Brasileira foi vítima
O estupro na África do Sul atinge todas as esferas da sociedade, independentemente de renda, raça ou idade. Mas é cometido principalmente por homens jovens e negros, que tendem a estuprar mulheres da mesma faixa etária, entre 13 e 30 anos.
Um fenômeno muito comum no país são os estupros em gangue, conhecidos como "jackrolling". Grupos de três a 30 jovens saem às ruas para violentar mulheres por mera diversão.
A jornalista brasileira A.M., 29, viveu esse drama no ano passado, quando foi violentada por oito homens no primeiro dia de uma viagem de férias à África do Sul.
A.M. foi estuprada à noite, quando ia para um shopping center de Johannesburgo. A brasileira foi levada para um hospital, onde recebeu medicamentos preventivos contra o vírus HIV, e retornou imediatamente ao Brasil.
A principal causa dessa brutalidade contra as mulheres, segundo os analistas sul-africanos, é a cultura de violência que criou raízes durante os 40 anos de apartheid.
"A violência política transformou-se em violência social. No antigo regime, toda vez que o Estado discordava ou não gostava de alguma coisa, respondia violentamente. Isso foi absorvido pela sociedade. Se você tem um problema com alguém, recorre imediatamente à violência", observou Vetten.
Os especialistas também atribuem a incidência alarmante de estupros aos problemas econômicos e ao desemprego, que, em 1999, atingia cerca de 30% da força de trabalho.
"Os trabalhadores e os homens negros enfrentam diariamente a opressão e a impotência. É bastante provável que a frustração deles com a marginalidade se manifeste em forma de dominação na vida privada, na qual as mulheres são o alvo mais acessível", diz um relatório do Centro de Estudos sobre Violência e Reconciliação da África do Sul.
"Muitos desses jovens acham que não há futuro para eles. É um sentimento de "deixe-me viver o momento, porque não existe amanhã", lamenta Vetten.
A impunidade também é uma aliada da violência sexual. O homem que estuprou Charlene Smith foi condenado, em abril passado, a 30 anos de prisão. Mas o caso é uma exceção. Uma pesquisa feita no ano passado mostrou que, para cada 400 denúncias de estupro na África do Sul, apenas um homem foi condenado.
"O número de estupros diminuiria bastante se os agressores soubessem que há uma grande chance de serem apanhados", afirma Vetten.
O Centro de Estudos sobre Violência e Reconciliação da África do Sul e outras ONGs estão em campanha para melhorar o sistema judicial. O governo sul-africano instalou, em várias cidades, 20 tribunais especiais para o julgamento de crimes sexuais, e policiais estão sendo treinados para investigar melhor as denúncias e oferecer atendimento adequado às vítimas.
Também foram criados alguns centros especiais, onde as mulheres podem denunciar o estupro e receber atendimento médico e psicológico. As ONGs dizem que isso ainda é pouco, mas já é um começo.
"Não podemos esperar soluções a curto ou médio prazo", disse Vetten, ressaltando que é fundamental fazer também uma grande campanha para mudar a mentalidade dos sul-africanos em relação ao sexo.
"Estamos começando um trabalho nas escolas para mudar as atitudes em torno do relacionamento entre meninos e meninas, homens e mulheres. Nós temos de desafiar o mito de que as mulheres estão pedindo para serem estupradas pela forma como se vestem ou se comportam", afirmou Vetten.




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