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São Paulo, quarta-feira, 17 de dezembro de 2003

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COMENTÁRIO

Patriotas e lucros

Quanto mais se analisa, maior o temor que tenhamos ingressado numa nova era de excessos do complexo militar-industrial

Desde o 11 de Setembro, o governo passou a evocar a segurança nacional para justificar um manto de segredo


PAUL KRUGMAN
DO "NEW YORK TIMES"

Na semana passada, a imprensa noticiou com destaque a possibilidade de a Halliburton e outras empresas americanas com contratos no Iraque estarem obtendo lucros ilegais. Como é inevitável e apropriado, a notícia da captura de Saddam Hussein relegou o assunto ao segundo plano, temporariamente. Mas a questão continua em aberto. Na realidade, quanto mais você a analisa, mais começa a temer que tenhamos ingressado numa nova era de excessos do complexo militar-industrial.
A história das importações de gasolina estranhamente caras da Halliburton (comandada pelo vice-presidente dos EUA, Dick Cheney, até 2000) no Iraque vai ganhando contornos cada vez mais bizarros. A gasolina de preço alto era comprada de um fornecedor cujo nome não é conhecido dos especialistas no setor, mas que parece ser administrado por uma importante família kuaitiana (sem dúvida ainda grata pela libertação do país em 1991). Documentos do Corpo de Engenheiros do Exército dos EUA examinados pelo ""The Wall Street Journal" fazem referência a ""pressões políticas" exercidas pelo governo do Kuait e pela embaixada americana naquele país para que a Halliburton negociasse unicamente com essa empresa. Eu me pergunto aonde isso nos leva.
Enquanto isso, a TV NBC ganhou acesso a relatórios do Pentágono sobre inspeções que dão conta de condições insalubres em cantinas militares administradas pela Halliburton no Iraque: ""Sangue espalhado pelo piso dos refrigeradores, panelas sujas, grelhas sujas, saladeiras sujas, carne e legumes em putrefação". Um relatório de outubro afirma que a Halliburton prometera resolver o problema, mas não o fizera.
E mais detalhes vêm surgindo sobre as tão comentadas reformas feitas pela Bechtel (ligada a líderes republicanos) em escolas. Mais uma vez, um relatório do Pentágono constatou obras ""pavorosas": entulho perigoso deixado em áreas de recreação, pinturas malfeitas, sanitários quebrados.
Serão exemplos isolados ou fazem parte de um padrão maior? Impossível saber sem uma investigação ampla e independente. Mas é difícil imaginar uma investigação assim no clima político atual -e é precisamente por isso que não podemos deixar de suspeitar o pior.
Sejamos claros: a preocupação com possíveis lucros ilegais não é uma questão que diga respeito à direita ou à esquerda. Não é de hoje que os conservadores avisam que as agências reguladoras tendem a cair sob a influência dos setores que regulamentam. A mesma coisa deve acontecer com os órgãos que concedem contratos. A Halliburton, a Bechtel e outras grandes empresas com contratos no Iraque investiram pesado em influência política, não só com contribuições para campanhas, mas também enriquecendo pessoas que imaginam que lhes possam ser úteis. Cheney integra uma tradição antiga, mesmo que não seja exatamente motivo de orgulho: a Brown & Root, que, mais tarde, se transformou na subsidiária da Halliburton que vem fazendo os negócios escusos no Iraque, lucrou alto com o apoio que deu, anos atrás, a um jovem político em início de carreira chamado Lyndon Johnson.
Existe, então, algum motivo para imaginar que as coisas estejam piores agora? Sim.
O maior freio aos lucros ilegais em contratos do governo é a ameaça de trazer os esquemas à tona. Ou seja, o melhor desinfetante é a luz do sol. No entanto, dificilmente se poderia imaginar um momento de transparência menor nos negócios do governo.
Em primeiro lugar, temos um governo de partido único -e é um partido altamente disciplinado, cujos membros obedecem as ordens recebidas. Existem parlamentares dispostos a enfrentar as empresas que estão tendo lucros ilegais, até ansiosos para fazê-lo, mas eles não têm autoridade para emitir intimações judiciais.
E conseguir informações sem intimações está muito mais difícil hoje do que era no passado, porque, como diz um novo relato publicado na revista ""U.S. News & World Report", a administração Bush ""estendeu um manto de segredo por cima de muitas operações críticas do governo federal". Desde o 11 de Setembro, o governo passou a evocar a segurança nacional para justificar esse segredo. Na realidade, porém, a tendência começou a partir do dia em que Bush tomou posse.
Para completar, desde o 11 de Setembro a imprensa americana -que, durante o governo Clinton, fazia questão de fazer render ao máximo qualquer indício que fosse de escândalo- adotou uma atitude cautelosa, protegendo a majestade do governo. Como indicam os artigos citados, a mídia vem fazendo mais perguntas recentemente. Mas mesmo agora é interessante comparar a cobertura britânica e a americana da saga de Neil Bush (irmão do presidente acusado de falcatruas).
O xis da questão é que temos, ou tivemos até agora, um ambiente em que funcionários do governo inclinados a fazer favores a seus amigos empresários e empresas inclinadas a superfaturar suas contas ou fazer obras de baixa qualidade não precisavam temer ter suas falcatruas expostas. Portanto, já que a natureza humana é o que é, o mais provável é que os casos preocupantes que têm vindo à tona não sejam isolados.
Alguns americanos ainda parecem pensar que a simples sugestão da possibilidade de lucros ilegais é, de alguma maneira, pouco patriótica. Eles deveriam aprender a história de Harry Truman, parlamentar que ganhou fama durante a Segunda Guerra ao liderar uma campanha contra os lucros ilegais. Truman acreditava, e com razão, que estava promovendo os interesses de seu país.
Com base nisso, Franklin Roosevelt escolheu Truman para ser seu vice. Já George W. Bush escolheu Dick Cheney, é claro.


Tradução de Clara Allain


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