São Paulo, sábado, 18 de março de 2006

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COMENTÁRIO

Irã x Iraque

THOMAS L. FRIEDMAN
DO "NEW YORK TIMES"

A Casa Branca divulgou na quinta-feira sua mais recente doutrina de estratégia de segurança nacional, na qual identifica o Irã como o país que, isoladamente, representa o maior perigo para os Estados Unidos hoje. O relatório não diz exatamente o que deveríamos fazer em relação ao Irã. Eis o que eu penso: a coisa mais assustadora, mais apavorante que poderíamos fazer ao Irã hoje -excetuando lançar um ataque direto contra esse país- seria sairmos do Iraque.
A segunda coisa mais assustadora e apavorante que poderíamos fazer ao Irã seria termos sucesso em nossa empreitada no Iraque. Mas o pior que poderíamos fazer, aquilo que deixaria o Irã mais feliz, seria continuarmos a sangrar no Iraque e a servir de babá do impasse nesse país. Em suma, já que não vamos invadir o Irã, a melhor maneira pela qual podemos influir nesse país é pelo que fazemos no Iraque.
Permita que eu explique: não sou a favor de uma retirada americana do Iraque neste momento -não enquanto ainda existir uma chance de um desenlace decente para a situação.
Mas, se nos retirássemos do Iraque, isso complicaria inacreditavelmente a vida de Teerã. Ouvem-se muitos comentários tolos afirmando que o Irã foi o grande beneficiado pela invasão americana do Iraque. Não tenha tanta certeza assim disso. Centenas de anos de história mesopotâmica nos ensinam que árabes e persas não jogam bem juntos.
Neste momento, a competição e a antipatia naturais entre árabes iraquianos e persas iranianos -apesar de grande número de ambos serem formados por muçulmanos xiitas- foram abrandadas pela ocupação americana do Iraque. Os dois lados podem dirigir sua ira contra nós.
Mas, assim que deixarmos o Iraque -e isso é algo em que você pode apostar sua casa e seus filhos-, a rivalidade natural entre árabes iraquianos e persas iranianos voltará à tona. Cultura, história e nacionalismo têm peso, sim. Irã e Iraque não travaram uma guerra de oito anos por engano, ou apenas porque Saddam estava no poder. Quando os EUA estiverem fora do Iraque, o fato de ser conhecido como "pró-iraniano" ou, pior ainda, como instrumento de Teerã não será uma estratégia política vencedora para nenhum político iraquiano.


Se saíssemos do Iraque hoje e o Irã tivesse que administrar o caos ali, em sua fronteira, isso seria um problema enorme para Teerã, algo que drenaria sua energia

Se saíssemos do Iraque hoje e o Irã tivesse que administrar o caos ali, em sua fronteira, isso seria um problema enorme para Teerã, algo que drenaria sua energia. Caso você não o tenha notado, os iraquianos têm um viés um tanto quanto violento e independente.
Quem imagina que o Iraque é uma fruta madura que cairá no colo do Irã assim que deixarmos o Iraque, e ali permanecerá, obediente, não conhece nem o Iraque nem o Irã. Os árabes xiitas iraquianos não esperaram séculos para chegar ao governo do Iraque apenas para entregar o país de bandeja aos persas xiitas iranianos. De maneira nenhuma.
Na ótima e imprescindível história militar da invasão americana do Iraque que escreveram, "Cobra II", Michael Gordon e Bernard Trainor explicam por que Saddam sempre quis conservar o mundo em dúvida em relação às suas armas de destruição em massa, mesmo quando seu armário de armas estava vazio. Foi para deter o Irã.
Devemos nos lembrar de que, na guerra que travaram, Iraque e Irã usaram gás tóxico um contra o outro. A última coisa que Saddam queria era que o Irã ficasse sabendo que seus estoques de gás tinham acabado. Gordon e Trainor reproduzem uma fala do diretor da inteligência militar iraquiana, que, após a guerra, teria dito a interrogadores americanos: "O que pensávamos que ia acontecer com a invasão da coalizão? Estávamos mais preocupados com a Turquia e o Irã". Toda a geopolítica é local.
Outra coisa: se os EUA estivessem fora do Iraque e lançassem ataques aéreos contra as instalações nucleares iranianas, o Irã não poderia retaliar com seus mísseis contra grandes concentrações de forças militares americanas nas proximidades. Isso também conferiria aos EUA mais liberdade para lidar com a ameaça nuclear iraniana.
Para os iranianos, a única coisa mais assustadora do que os EUA deixarem o Iraque seria -e essa é minha opção preferencial- os EUA conseguirem levar sua empreitada no Iraque a bom cabo.
O Iraque já teve duas eleições em que qualquer pessoa que quis pôde se candidatar e votar. Isso forma um contraste acentuado com as eleições no Irã, onde só podem se candidatar conservadores que tenham o selo de aprovação dos aiatolás. O Iraque possui uma imprensa livre, que está em expansão. Os aiatolás iranianos, inseguros, calaram as vozes de seus críticos.
Quanto mais os xiitas iraquianos ganharem poder num Iraque democrático, mais os xiitas iranianos vão se indagar por que não gozam dos mesmos direitos que os xiitas do país vizinho. Outra coisa: os maiores centros espirituais do islã xiita não ficam no Irã, mas no Iraque. E, quanto mais se fortalecem os centros religiosos xiitas do Iraque -com sua vertente xiita iraquiana própria, representada pelo grão aiatolá Ali al Sistani, para quem os clérigos devem ficar de fora da política-, mais os mulás iranianos verão sua influência diminuir.
Assim, os EUA retirarem suas forças do Iraque seria uma boa estratégia anti-Irã. Terem sucesso no que se propuseram a fazer no Iraque seria ainda melhor. A única estratégia que não funcionaria para nós, mas que seria ideal para o Irã, seria que as tropas americanas permanecessem no Iraque como alvos fáceis a serem atingidos, servindo de babás do impasse e absorvendo o ódio e o ressentimento de todos -inclusive o ressentimento que, normalmente, seria dirigido contra Teerã.

Tradução de Clara Allain

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