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ARTIGO
Lições da crise na UE
DEISY VENTURA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Antes que algum alarmista profetize o fim da integração econômica, para regozijo dos detratores
do Mercosul, convém analisar
friamente o sonoro "não" francês
à Carta européia. Há realmente
ameaça ao futuro da União Européia? A crise ricocheteará sobre a
integração latino-americana?
Constituição Européia é o "nome-fantasia" do texto que reúne e
modifica os tratados europeus em
vigor, que já desfrutam de hierarquia constitucional nos direitos
nacionais. Dos 25 Estados-membros da UE, 10 optaram por ratificar a Constituição por referendo
popular, para dar-lhe legitimidade democrática, matéria escassa
num tema impopular e complexo
como a integração regional.
O objeto do referendo é a Constituição, e não o pertencimento
do país à UE. Tampouco estavam
em questão o mercado sem fronteiras, a cidadania européia, a política comercial comum, o euro e
as instituições comunitárias. Foi
submetida a votação apenas uma
nova etapa da evolução desse cinqüentenário processo, que já conhecera o "não" dinamarquês e
irlandês a distintos tratados, e o
norueguês à adesão ao bloco.
À dificuldade de explicar o longo texto constitucional, somava-se o pior dos riscos de um referendo: transformar-se em plebiscito
da política interna, ameaçando
não somente o objeto votado mas
também os governantes.
Sob a liderança do recém-eleito
Zapatero, o processo de ratificação popular da Constituição começou neste ano com o "sim" dos
espanhóis (27/2). O "não" dos
franceses forjou-se num contexto
político oposto, ao cabo de dois
traumas eleitorais. Em 2002, a extrema direita de Le Pen chegou ao
segundo turno das eleições presidenciais. Em 2004, o governo Chirac foi derrotado nas eleições regionais, mas recusou-se a desfazer seu gabinete.
O referendo não só impôs um
novo governo como o levou a admitir a possibilidade de veto ao
polêmico ingresso da Turquia na
UE. A oposição não saiu ilesa: o
Partido Socialista expurgou a dissidência que ignorou o plebiscito
interno e votou pelo "não".
O subseqüente "não" holandês
anunciou o perverso "efeito-dominó". Para salvar seu próprio
governo, Tony Blair suspendeu o
referendo inglês: em uma semana, o "não" subiu de 57% a 72%
nas pesquisas. Seria o tiro de misericórdia na Constituição?
Juridicamente, não. Em princípio, o Conselho Europeu decidiria sobre sua vigência, caso ao menos 20 Estados-membros a tivessem ratificado até novembro de
2006, prazo agora estendido até
2007. Países importantes como a
Alemanha já a aprovaram. Mas
seria a Constituição apenas uma
vítima da insatisfação dos eleitores com seus governos?
Não. A UE é um grande sucesso
político e econômico, que garantiu a paz e o desenvolvimento e,
ao contrário do que se alardeia,
possui uma pequena e eficiente
burocracia com menos funcionários (cerca de 35 mil) do que prefeituras como as de Paris ou Buenos Aires. Mas um processo de integração pouco transparente, mal
explicado e limitado aos governos, que se alarga rapidamente e
perde profundidade, mais do que
um erro, pode ser um perigo.
Por décadas, os temas europeus
foram monopólio das burocracias nacionais. Os temas ditos
não-comerciais tardaram a ser
tratados. O predomínio dos valores de mercado deu à UE a face
anglo-saxônica da concorrência
feroz e da flexibilidade nas relações de trabalho, divorciando-a
das demandas sociais. A UE deu
lugar ao "jogo duplo" dos governos, que culpam Bruxelas em cada decisão antipática que tomam
em favor do mercado.
Oportunista, a campanha pelo
"não" exigia uma Constituição
mais avançada do que os modelos
nacionais, esquecendo que os cidadãos haviam eleito, no início da
década, governos conservadores
(com direito, inclusive, a José Maria Aznar). É como se contas de
chumbo pudessem formar um
verdadeiro colar de pérolas.
Se a derrota da Carta fosse o
naufrágio da Europa mercantilista, em benefício da Europa social,
seria caso de comemoração. Infelizmente, não o é. Um eventual
novo texto seria negociado entre
ao menos 25 Estados, alguns capitalistas debutantes, gerando evidente risco de retrocesso.
Um olhar do Sul retém ao menos quatro idéias centrais sobre a
crise na UE. Se o desencontro pode resultar em vantagens pontuais para quem com ela negocia,
a redução de seu grau de integração, porém, seria uma grave derrota para quem não deseja um
mundo unipolar. Segundo, a UE
deveria aperfeiçoar-se antes de estender-se; aprofundar antes de
alargar. Terceiro, integrar-se ao
abrigo da legitimidade democrática é como fundar um edifício em
areia movediça.
Enfim, a crise européia é fruto
de um déficit de liderança e da
evidente falta de um "plano B",
em caso de fracasso da Constituição. A propósito, para que tal desgaste jamais ocorra alhures, seria
prudente que o "mais ou menos"
latino-americano desse rapidamente lugar a um sonoro "sim".
Deisy de Freitas Lima Ventura, 37, é
doutora em direito internacional e europeu da Universidade de Paris 1, consultora jurídica da secretaria do Mercosul,
em Montevidéu, e autora, entre outros,
de "As Assimetrias entre o Mercosul e a
União Européia" (ed. Manole).
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