São Paulo, sábado, 18 de junho de 2005

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ARTIGO

Lições da crise na UE

DEISY VENTURA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Antes que algum alarmista profetize o fim da integração econômica, para regozijo dos detratores do Mercosul, convém analisar friamente o sonoro "não" francês à Carta européia. Há realmente ameaça ao futuro da União Européia? A crise ricocheteará sobre a integração latino-americana?
Constituição Européia é o "nome-fantasia" do texto que reúne e modifica os tratados europeus em vigor, que já desfrutam de hierarquia constitucional nos direitos nacionais. Dos 25 Estados-membros da UE, 10 optaram por ratificar a Constituição por referendo popular, para dar-lhe legitimidade democrática, matéria escassa num tema impopular e complexo como a integração regional.
O objeto do referendo é a Constituição, e não o pertencimento do país à UE. Tampouco estavam em questão o mercado sem fronteiras, a cidadania européia, a política comercial comum, o euro e as instituições comunitárias. Foi submetida a votação apenas uma nova etapa da evolução desse cinqüentenário processo, que já conhecera o "não" dinamarquês e irlandês a distintos tratados, e o norueguês à adesão ao bloco.
À dificuldade de explicar o longo texto constitucional, somava-se o pior dos riscos de um referendo: transformar-se em plebiscito da política interna, ameaçando não somente o objeto votado mas também os governantes.
Sob a liderança do recém-eleito Zapatero, o processo de ratificação popular da Constituição começou neste ano com o "sim" dos espanhóis (27/2). O "não" dos franceses forjou-se num contexto político oposto, ao cabo de dois traumas eleitorais. Em 2002, a extrema direita de Le Pen chegou ao segundo turno das eleições presidenciais. Em 2004, o governo Chirac foi derrotado nas eleições regionais, mas recusou-se a desfazer seu gabinete.
O referendo não só impôs um novo governo como o levou a admitir a possibilidade de veto ao polêmico ingresso da Turquia na UE. A oposição não saiu ilesa: o Partido Socialista expurgou a dissidência que ignorou o plebiscito interno e votou pelo "não".
O subseqüente "não" holandês anunciou o perverso "efeito-dominó". Para salvar seu próprio governo, Tony Blair suspendeu o referendo inglês: em uma semana, o "não" subiu de 57% a 72% nas pesquisas. Seria o tiro de misericórdia na Constituição?
Juridicamente, não. Em princípio, o Conselho Europeu decidiria sobre sua vigência, caso ao menos 20 Estados-membros a tivessem ratificado até novembro de 2006, prazo agora estendido até 2007. Países importantes como a Alemanha já a aprovaram. Mas seria a Constituição apenas uma vítima da insatisfação dos eleitores com seus governos?
Não. A UE é um grande sucesso político e econômico, que garantiu a paz e o desenvolvimento e, ao contrário do que se alardeia, possui uma pequena e eficiente burocracia com menos funcionários (cerca de 35 mil) do que prefeituras como as de Paris ou Buenos Aires. Mas um processo de integração pouco transparente, mal explicado e limitado aos governos, que se alarga rapidamente e perde profundidade, mais do que um erro, pode ser um perigo.
Por décadas, os temas europeus foram monopólio das burocracias nacionais. Os temas ditos não-comerciais tardaram a ser tratados. O predomínio dos valores de mercado deu à UE a face anglo-saxônica da concorrência feroz e da flexibilidade nas relações de trabalho, divorciando-a das demandas sociais. A UE deu lugar ao "jogo duplo" dos governos, que culpam Bruxelas em cada decisão antipática que tomam em favor do mercado.
Oportunista, a campanha pelo "não" exigia uma Constituição mais avançada do que os modelos nacionais, esquecendo que os cidadãos haviam eleito, no início da década, governos conservadores (com direito, inclusive, a José Maria Aznar). É como se contas de chumbo pudessem formar um verdadeiro colar de pérolas.
Se a derrota da Carta fosse o naufrágio da Europa mercantilista, em benefício da Europa social, seria caso de comemoração. Infelizmente, não o é. Um eventual novo texto seria negociado entre ao menos 25 Estados, alguns capitalistas debutantes, gerando evidente risco de retrocesso.
Um olhar do Sul retém ao menos quatro idéias centrais sobre a crise na UE. Se o desencontro pode resultar em vantagens pontuais para quem com ela negocia, a redução de seu grau de integração, porém, seria uma grave derrota para quem não deseja um mundo unipolar. Segundo, a UE deveria aperfeiçoar-se antes de estender-se; aprofundar antes de alargar. Terceiro, integrar-se ao abrigo da legitimidade democrática é como fundar um edifício em areia movediça.
Enfim, a crise européia é fruto de um déficit de liderança e da evidente falta de um "plano B", em caso de fracasso da Constituição. A propósito, para que tal desgaste jamais ocorra alhures, seria prudente que o "mais ou menos" latino-americano desse rapidamente lugar a um sonoro "sim".


Deisy de Freitas Lima Ventura, 37, é doutora em direito internacional e europeu da Universidade de Paris 1, consultora jurídica da secretaria do Mercosul, em Montevidéu, e autora, entre outros, de "As Assimetrias entre o Mercosul e a União Européia" (ed. Manole).

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