São Paulo, domingo, 18 de julho de 2004

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ESTRANHOS NO PARAÍSO

Folha acompanha um dia de trabalho do grupo que tenta ajudar imigrantes desesperados no deserto

ONG traz água para salvar ilegais nos EUA

RAFAEL CARIELLO
ENVIADO ESPECIAL AO ARIZONA

Quando foi encontrado no deserto do Arizona, Filiberto Lopez segurava uma garrafa d'água vazia e caminhava havia quatro dias desde o México. Disse que não comera nada em dois dias e não bebia água desde a noite anterior. Sentia dores no peito e nas pernas e afirmou ser diabético.
Só largou o vasilhame inútil quando Mario Arosema, 25, o integrante de uma ONG de assistência a imigrantes que o encontrou, ofereceu outra, cheia até a boca, e uma escolha: entregar-se à Patrulha de Fronteira, que o levaria a um hospital e depois certamente de volta ao México, ou seguir caminho a pé sob o sol de mais um dia, até a cidade mais próxima.
"Tenho vontade de voltar, mas não posso. Devo muito dinheiro", declarou Lopez, 24, ajeitando na cabeça o boné e respirando com dificuldade. Na manhã da última segunda-feira, às 8h, a temperatura já atingia os 40C.
A Folha acompanhou um dia de trabalho de Arosema, que atua na Humane Borders -ou Fronteras Compasivas, que é o nome em espanhol. O objetivo da ONG, segundo seu fundador, reverendo Robin Hoover, é "tirar a morte da equação da imigração".
Para tentar fazê-lo, espalharam 52 estações de água pelo deserto, ao longo da fronteira sul do Arizona, um dos locais de mais intensa travessia de migrantes -e, considerados os números dos casos de morte, um dos mais perigosos também. A cada semana, dizem, reabastecem os "postos" com cerca de 4.000 litros de água.
Segundo dados que levantaram com a Patrulha de Fronteira, o número de mortos no setor de Tucson -que corresponde à maior parte da fronteira do Arizona com o México- cresceu de 12, em 1996, para 174 no ano passado. Foi nessa região, perto da cidade de Douglas, que, tentando entrar nos EUA, morreram dois brasileiros desde o início de junho.
O reverendo Hoover, que quando vai "a campo" usa botas e chapéu de caubói, explica que a Patrulha de Fronteira "fechou" as entradas urbanas da divisa com o México, deixando como principal canal de entrada o deserto.
"Havia 11 anos ninguém morria. A partir de 93, a Patrulha de Fronteira fechou as áreas urbanas com mais eficiência -por onde vinham os migrantes, de ônibus ou caminhando pelas cidades. Agora, nos empurraram para o deserto, de propósito", afirma.
Arosema -que tem uma loja de peças para caminhões- conta que vai ao deserto reabastecer os pontos de água pelo menos uma vez por semana -"às vezes duas ou três". Diz que, em nove de cada dez incursões, encontra migrantes. "Sempre precisam pelo menos de água e comida. Em um terço das vezes, são casos como o que vimos segunda-feira", relata, referindo-se à escolha que Lopez tinha que fazer no dia em que a Folha acompanhou Arosema.

"Dói tudo"
Lopez contou que começou a travessia com um grupo de 13 pessoas, mexicanos, mas foi abandonado na segunda noite, após se desentender com um deles. "Discutimos. Tinha um que abria as mochilas e tirava a comida." Quando acordou, tinham ido embora e levado sua sacola. Seguiu o caminho acompanhando os postes de eletricidade que cruzam o deserto até as cidades.
Sentado agora sob um esboço de sombra criado por um arbusto de galhos sem folhas, o migrante pergunta se Arosema não pode levá-lo até Tucson, segunda maior cidade do Arizona, distante uma hora de carro dali.
Nada feito. Se colocasse Lopez em sua caminhonete, a Patrulha de Fronteira poderia detê-lo por ajudar alguém que, de toda forma, era um criminoso.
"Não temos permissão para isso. E você só pode ir para um hospital se avisarmos a imigração. O que sente?"
"Doem-me as pernas, o peito, tudo."
"Beba mais água."
"Como uma coisinha assim, e daqui não passa", diz Lopez, apontando a garganta.
"Pensa em permanecer nos EUA?"
"No México não nos pagam nunca. Tenho carteira de motorista de caminhão e tudo."
Arosema mostra onde ele pode descansar. Mais adiante, os arbustos são mais altos, a sombra é maior, e a chance de ser achado, menor. "Mas, se tem dúvidas sobre a sua saúde, é melhor se entregar do que estar morto."
"Já viajei tanto, já fiz tanto sacrifício", responde o rapaz, que tem a pele bronzeada, um bigode fino crescido e um pequeno brinco de argola na orelha esquerda.

"Está tudo bem"
A sede e centro de referência para as cerca de cem pessoas que trabalham para as Fronteras Compasivas é a Primeira Igreja Cristã de Tucson.
No sermão do último domingo, o reverendo Hoover comparou passagens do Antigo e do Novo Testamento com a história dos atuais migrantes. Falou da escravidão dos judeus, da travessia do deserto e, numa auto-referência, do Bom Samaritano. Para o pastor, o abandono de casa para se lançar no deserto parece servir como metáfora para a vida.
Tomada no sentido que a palavra tem para os americanos, havia apenas duas pessoas que não eram "brancas" ali na cerimônia -Arosema e Michael Wilson, 55, índio da nação Tohono O'odham, que ocupa um território autônomo no sul do Estado e também faz fronteira com o México.
Foi Wilson que, na terça-feira, durante incursão para reabastecer os postos de água dentro do território indígena, ofereceu a mesma escolha a Juan Carlos Delgado, 30, que também tinha sido deixado para trás pelo grupo com que cruzava o deserto para tentar a vida nos EUA.
Com os pés inchados, sangrando, e sem conseguir mais caminhar, sua opção foi mais fácil. "Vou ficar aqui, esperando pela "migra'", disse, sentado à beira da estrada de terra onde foi encontrado.
Apesar da mulher e dos três filhos -um de dez, outro de seis e um bebê de um ano de idade- que havia deixado na cidade de Guanajuato, Lopez ainda resistia uma hora e um litro e meio de água depois de ser encontrado por Arosema. "Recomendo de verdade que venham buscá-lo e o levem ao hospital."
Não é primeira vez que Lopez entra ilegalmente nos EUA, diz. Há seis anos, morou no Estado da Pensilvânia, trabalhando com seus irmãos, que ainda estão por lá, no conserto de telhados. Já tinha dois filhos e ficou por quatro anos. Voltou para o México. Agora, o dinheiro acabou, diz, e pretende reencontrar seus irmãos mais ao norte.
Arosema pergunta se ele tem dinheiro. "Tenho "mexicanos'", responde. O integrante da ONG tira da carteira US$ 38, que entrega a Lopez. O migrante fica segurando a quantia, sem colocá-la no bolso.
O que disse às crianças antes de vir? "Não sabiam. Estavam dormindo."
Sobre o que ele e a esposa conversaram na última noite? Responde apenas: "Só choramos. Nada mais".
Uma caminhonete branca aparece, vindo na direção de onde estamos. Lopez ainda tem na mão o dinheiro. Mais tarde, questionado se não tinha medo nas suas idas ao deserto, Arosema disse que nessa hora sentiu. Este repórter também.
Dois sujeitos pulam do carro, e dizem ser da patrulha. Perguntam se Lopez gostaria de ver o médico. "Queria vê-lo, mas não sei", hesita.
Não tem mais escolha. É levado pelos policiais. Antes de entrar no carro, dá um número de telefone a Arosema e faz um pedido:
"Ligue para minha irmã Juanilla. Diga que estou bem. Que está tudo bem".


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