São Paulo, domingo, 18 de julho de 2004

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MISSÃO NO CARIBE

Esforço liderado pelos brasileiros vai além de prover segurança
No Haiti, Brasil encara tarefa de "construção de nações"

RICARDO BONALUME NETO
DA REPORTAGEM LOCAL

Discretamente, bem aos poucos, meio até mesmo sem saber o que fazer e como agir em detalhe, o Brasil está embarcando, no Haiti, em uma das mais delicadas tarefas da política internacional: a "construção de nações".
Os 1.200 soldados brasileiros hoje no Haiti são apenas a face mais visível do esforço internacional para transformar o mais pobre país em uma nação minimamente viável.
A comunidade internacional não tem bom desempenho em tarefas desse gênero. Os americanos se meteram a transformar o Iraque, mas a crise da ocupação está estampada todo dia nos jornais. Os Bálcãs continuam intratáveis -têm de ser patrulhados por militares da Otan (aliança militar ocidental). Estados falidos da África continuam marcando presença nos últimos postos nas listas de desenvolvimento humano.
Uma rara exceção foi Timor Leste, onde também atuam brasileiros, na força de paz e em vários projetos de cooperação, educação, agricultura e treinamento profissional. Mesmo pobre -mas com o potencial de ter recursos da exploração de petróleo-, o mais novo país independente do mundo conseguiu criar instituições democráticas e aos poucos faz o Estado funcionar.
O Haiti é a bola da vez -e recebe sua segunda missão da ONU em uma década, depois de uma crise político-militar.
"Dois aspectos são inseparáveis: segurança e desenvolvimento", disse o ministro da Defesa brasileiro, José Viegas Filho, durante uma visita ao Haiti, dias atrás.
"Não há segurança se não há progresso; não há progresso se não há segurança", acrescentou a ministra da Defesa do Chile, Michelle Bachelet, que também visitava as tropas de seu país.
Viegas enfatizou a importância da ação multilateral para reformar o Haiti, país que, em 200 anos de vida independente, teve cerca de 30 golpes de Estado e cuja última crise resultou no exílio do presidente Jean-Bertrand Aristide, em fevereiro passado.
Uma força composta por tropas de EUA, França, Canadá e Chile restaurou a ordem no país, antes de passar o mandato para a atual missão da ONU, cujo componente militar é chefiado pelo general-de-divisão brasileiro Augusto Heleno Ribeiro Pereira.

Recursos humanos
O governo brasileiro não tem verba própria para ajudar o país caribenho, mas pode ajudar de outras formas, com recursos humanos. O financiamento poderia vir dos países que tradicionalmente doam dinheiro ao Haiti, como EUA e Canadá.
O premiê haitiano, Gérard Latortue, disse a Viegas que o país precisa de coisas simples, como alguém que ensine a população rural a produzir farinha de mandioca ou a furar poços.
O ministro Nilmário Miranda, da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência, aproveitou a viagem ao Haiti para fazer contatos tanto com o governo como com a oposição -os partidários de Aristide. "Ainda há violação dos direitos humanos, mas não sistemática."
Aristide e seus correligionários reclamam que foram vítimas de um golpe patrocinado pelos EUA. Mas mesmo eles não reclamam da presença brasileira no país. "Pelo menos é o Brasil", é como reagem, segundo Nilmário.
A simpatia que os brasileiros despertam está ajudando a missão. O general Heleno comenta que os haitianos não paravam de lamentar a derrota da seleção brasileira pelo Paraguai na Copa América. O jogo de futebol entre as seleções do Brasil e Haiti, marcado para 18 de agosto, é aguardado com ansiedade no país.

Influência dos EUA
Mas, se os brasileiros têm a simpatia, quem tem os recursos são os americanos. Sem o apoio dos EUA, as forças da ONU vão ter mais dificuldades na sua missão, especialmente quando for necessário desarmar as milícias.
Essa avaliação foi feita por James Dobbins, um diplomata conhecedor não só do país caribenho, mas também especialista nas tentativas americanas de "construção de nações" -foi enviado do atual governo americano ao Afeganistão e trabalhou para o governo Clinton (1993-2001) no Haiti, nos Bálcãs e na Somália.
"Os objetivos têm de ser realistas", disse Dobbins à Folha. "É possível dar uma contribuição positiva ao país." Em depoimento recente ao Senado americano, Dobbins defendeu maior ajuda econômica ao país. "Só os EUA têm influência real no Haiti."
Apesar dessa ênfase no papel dos EUA, Dobbins acredita que a força da ONU possa ter um papel importante. "A ONU já demonstrou ser capaz de realizar coisas com poucos recursos. Se não deixará o Haiti mais próspero, pelo menos o deixará mais seguro."
Um relatório divulgado na semana passada pelo governo interino haitiano e por várias instituições internacionais, entre as quais a ONU e o Banco Mundial, revelou que o Haiti vai precisar de US$ 1,3 bilhão nos próximos dois anos. Hoje já estão disponíveis US$ 440 milhões. Uma conferência dos países doadores, marcada para amanhã e terça-feira, no Banco Mundial, em Washington, debaterá como obter os recursos.


O jornalista Ricardo Bonalume Neto viajou ao Haiti a convite do Ministério da Defesa.


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