São Paulo, sábado, 18 de setembro de 2004

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Famílias ainda buscam desaparecidos

SETH MYDANS
DO "NEW YORK TIMES", EM BESLAN

Todos os dias, durante as últimas duas semanas, Zema Godzhiyeva tem se esforçado para recuperar a esperança enquanto examina os corpos queimados do necrotério de Beslan à procura de seu filho de 14 anos, Roman.
E todas as vezes em que falha, diz ela, a sensação é a de que o seu filho morreu novamente e dia a dia ela sente que está morrendo com ele.
"Eu me tornei um cachorro", diz, sentada em seu apartamento pouco iluminado. "Depois de todos esses dias, não sinto nada. Meu coração é como uma pedra."
Duas semanas depois de rebeldes tchetchenos terem tomado uma escola aqui, o número de mortos subiu para bem mais de 300 -muitos deles crianças-, e o número dos internados em hospitais tem caído.
Mas não há cifras oficiais para o que parece ser o destino mais difícil de todos -o pânico claustrofóbico daqueles que ainda não sabem o que aconteceu com as pessoas que mais amam.
De acordo com uma contagem feita pelas próprias famílias, há 122 desses casos: 84 irreconhecíveis no necrotério e 38 que aparentemente não deixaram nenhum rastro, a não ser a dor.
No dia em que a escola foi tomada, Robert, 16, irmão de Roman, se livrou de uma seqüestradora e conseguiu escapar. Ele, também, está se afundando sob o peso da ausência de Roman. "Ele começou a dormir com seu pai", disse Godzhiyeva. "Ele chama: "Roman, Roman!". E diz: "Queria que Roman tivesse sobrevivido no meu lugar"."
A Rússia não é um país cujo governo atenda aos lamentos dos parentes das vítimas, e eles foram deixados desamparados da mesma forma que os sobreviventes e famílias de mortos dos últimos desastres dessa nação.
Eles pedem ajuda a vários funcionários do governo; eles fazem buscas em hospitais de cidades distantes; vasculham restos de osso, carne e dentes que foram deixados de lado no necrotério como se fossem bandejas de lembrancinhas de festa.
"Lá é o inferno", disse Aza Pukhayeva, que comanda sua família na busca de sua sobrinha de 12 anos, Madina. "Há só restos queimados lá. Não dá para saber se é um menino ou menina. Alguns protegem a cabeça com as mãos, como bebês num berço. Nós examinamos cada fragmento, cada dedo, os cabelos, os dentes."
Madina usava um anel de ouro e tinha uma mancha sobre seu olho direito, relata Pukhayeva. Ela mostra um retrato que carrega para todos os lados. "Vê? É bonita como uma pintura."
A família Kusov reuniu um grupo de parentes vindos de várias partes do país em busca de sua matriarca de 70 anos, Maria, que havia levado seu neto à escola naquele dia e nunca voltou.
"Ela tem cinco irmãs e três irmãos. Você pode imaginar quantos primos nós temos", diz o seu filho Vladimir, 37. "Todos temos checado hospitais. Estive no necrotério 8, 10, 12 vezes. Não temos mais idéia do que fazer."

Resgatada e desaparecida
Todos da região da pequena cidade de Beslan, todos menos aparentemente as autoridades, conhecem a história de Konstantin Mamayev e de sua filha que ele encontrou e perdeu novamente.
Seu nome é Sabina, 14, e, como seu pai relata, ele a encontrou entre os feridos naquele último dia e a mandou de carro para um hospital. Em seguida, ele voltou para resgatar mais vítimas.
Foi a última vez que a viu.
"Simplesmente não posso explicar", diz, um exausto e confuso homem de 44 anos. "O fato é: eu a tive em meus braços. Eu a carreguei. E ela não está aqui."
Ele conta assim sua história: "Eu a encontrei no chão com os outros feridos. Eu me agachei ao lado dela e perguntei: "Saba, como você está?". E ela respondeu: "Estou bem". Foi tudo o que dissemos."
Ele não carregou a maca, disse, porque estava exausto. "Tinha ficado três noites sem dormir. Estava desmaiando de pé".
Cansado como estava, e desesperado para encontrar sua única filha, não teria ele resgatado outra menina?
Mamayev tem um vídeo de televisão que mostra um fragmento da cena caótica.
Em meio a uma multidão que grita e corre, uma garota é carregada rapidamente numa maca até uma grande van branca. Atrás da maca está Mamayev. Quando a maca é colocada no chão, ele se ajoelha perto de seus pés.
E então a câmera vira.


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