São Paulo, sábado, 18 de setembro de 2004

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ARTIGO

Como no Líbano, poder se fragmenta no Iraque

PATRICK COCKBURN
DO "INDEPENDENT"

"No Iraque ocorrem atos de violência constantes, mas a liberdade está avançando", disse o presidente George W. Bush, em tom despreocupado.
Não é verdade. A violência piora a cada dia, e a liberdade está visivelmente em queda livre. Os EUA e o governo iraquiano interino não exercem controle pleno de praticamente nenhuma cidade iraquiana, grande ou pequena, fora do Curdistão. A insurgência está se alastrando. Os iraquianos dizem que seu país está se fragmentando em centros de poder rivais, como o Líbano na década de 70.
Vista de longe, a violência no Iraque parece ter virado endêmica. Mas o padrão vem mudando significativamente nos últimos seis meses, e para pior. Um ano atrás, os combates se limitavam principalmente aos distritos sunitas nas Províncias que cercam Bagdá. Hoje, as forças americanas são atacadas em todo o país. Agosto foi o primeiro mês em que mais soldados americanos foram mortos e feridos por combatentes xiitas do que por sunitas.
Os EUA e o governo interino exercem controle cada vez menor, mesmo na região central de Bagdá. Nesta semana o Exército americano disparou foguetes de helicópteros para controlar uma multidão na rua Haifa, a poucas centenas de metros de distância da Zona Verde, sede das forças americanas e do governo iraquiano. Os insurgentes responderam cometendo sua própria atrocidade no mesmo lugar, quando um carro-bomba explodiu no meio de uma multidão de candidatos a policiais, matando 47 deles.
Poderíamos imaginar que a selvageria desse último ataque, no qual foram mortos apenas iraquianos, resultaria em apoio maior ao governo. Mas, quando conversei com sobreviventes do ataque, eles achavam que tinham sido atingidos por um míssil americana ou perguntavam por que os insurgentes estavam matando iraquianos, quando deveriam estar matando americanos.
No ano passado, a população iraquiana estava dividida em sua visão da ocupação e da resistência armada. Hoje é difícil encontrar um iraquiano que não apóie os ataques contra americanos.
Usando as Forças Armadas americanas, o governo pode abrir caminho à força em qualquer cidade do Iraque. Mas o poderio militar americano não se traduz facilmente em força política. A base política do governo é pequena e não cresceu desde a posse, em 28 de junho.
Os EUA estão tentando aumentar a autoridade do governo interino, com a ajuda de seu poderio aéreo. É contraproducente. Porta-vozes militares anunciam ataques aéreos de precisão contra ""terroristas", enquanto a população do Iraque assiste na TV a imagens de crianças feridas.
Por que os EUA se mostram tão desastrados no Iraque? A razão principal, provavelmente, é que os responsáveis pelas decisões finais nos EUA estão muito mais interessados em quem detém o poder em Washington do que no que acontece em Bagdá.
O general dos marines James Conway, que está saindo do Iraque, deixou claro que se opôs, primeiro, à decisão de montar o certo a Fallujah, inquietando sua população, e depois à decisão de entregar a cidade aos insurgentes. Em ambos os casos, o impacto sobre a eleição presidencial americana parece ter sido a única preocupação da Casa Branca.
Nas circunstâncias atuais, será impossível realizar eleições que tenham qualquer significado no Iraque. A população iraquiana não vai reconhecer como justa uma eleição na qual as urnas vierem amarradas às costas de tanques americanos. Se as Províncias sunitas não participarem das eleições, mas os distritos xiitas, sim, as divisões entre as duas comunidades só irão se aprofundar. ""Estou certo de que o resultado das eleições será uma fotocópia do governo interino", disse um comerciante de Fallujah. ""Eles [os candidatos] são americanos que falam árabe."
As eleições só poderiam dar certo se todos os iraquianos acreditassem que elas serão justas e livres. Isso só poderia acontecer se houvesse uma conferência de todas as comunidades e os grupos de poder no Iraque, incluindo os insurgentes sunitas e xiitas, para acertar regras básicas. Mas, para isso, seria preciso que os EUA e o governo interino reconhecessem que são apenas dois entre os muitos poderes presentes no Iraque, e isso eles não dão qualquer sinal de que estejam prontos a fazer.


Tradução de Clara Allain


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