São Paulo, sábado, 18 de setembro de 2004

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IRAQUE SOB TUTELA

Jornalistas são convidados a presenciar interrogatórios sem tortura; diminui número de prisioneiros

EUA buscam "humanizar" Abu Ghraib

NORIMITSU ONISHI
DO "NEW YORK TIMES", EM BAGDÁ

Nas cercanias de Bagdá, alguns representantes das forças armadas apontavam para o Camp Liberty, inaugurado um dia antes, como exemplo para o funcionamento da nova prisão de Abu Ghraib. Cerca de 300 prisioneiros iraquianos, inocentados de quaisquer delitos, estavam sendo libertados na manhã de quarta-feira.
Uma fila se formou diante de uma das saídas. Um soldado americano, postado do lado de fora, fazia a chamada: "151.948", e um homem baixinho, usando um roupão azul e carregando uma trouxa embaixo dos braços, estava livre para sair, recebendo um documento entregue numa mesa à qual se sentavam dois soldados. O segundo soldado entregou ao homem US$ 25 e panfleto bem impresso de 12 páginas sobre as realizações do Governo Provisório Iraquiano. Os prisioneiros libertados embarcaram em ônibus, a caminho do centro da cidade.
Em resposta aos abusos cometidos, as Forças Armadas impuseram dezenas de mudanças, entre as quais um processo mais enxuto de seleção de prisioneiros, para reduzir a lotação e criar um sistema formal de interrogatório. Os edifícios com celas nas quais abusos foram cometidos passaram à administração do Governo Provisório; os americanos agora conservam seus prisioneiros em dois novos campos, construídos com tendas, conhecidos como Camp Liberty e Camp Redention.
O general Geoffrey Miller, comandante americano encarregado das detenções e interrogatórios, conduziu jornalistas pelos novos campos numa visita que incluiu pernoite. O objetivo era demonstrar as mudanças, e ele disse que a transformação equivalia a "restaurar a honra" dos EUA.
De acordo com relatórios sobre os abusos, deficiências de comando geraram confusão sobre os métodos de tratamento de prisioneiros e acarretaram o uso de técnicas abusivas de interrogatório, como o isolamento, uso de cachorros, privação de sono e a proibição de vestir roupas. Além disso, no final do ano passado e no começo de 2004, segundo fotografias e depoimentos, diversos soldados americanos agrediram e humilharam prisioneiros, muitas vezes com a intenção de obter informações adicionais sobre os insurgentes. Dois soldados de baixa patente foram condenados em corte marcial.

Interrogatórios
Um novo sistema de interrogatório, adotado em abril, inclui diversos níveis de fiscalização e se concentra no estabelecimento de uma "relação produtiva" entre os interrogadores e os prisioneiros, sem o emprego de coerção.
"Vocês se surpreenderiam com as vantagens que uma lata de refrigerante pode oferecer", disse o tenente-coronel Mark Costello, supervisor de interrogatórios.
Na noite de terça-feira, dentro de um pequeno barracão de madeira usado para os interrogatórios, um supervisor, um analista em comportamento e um analista de informação assistem e ouvem em monitores de TV ao interrogatório que está sendo conduzido na construção vizinha. Naquela construção, por meio de uma janela de observação disfarçada, pode-se ver um prisioneiro respondendo a um interrogante, com a ajuda de um intérprete.
Sob o novo sistema, antes que o interrogatório aconteça é preciso que o interrogador e o analista de informação decidam sobre as técnicas e foco; o plano é submetido à aprovação de um advogado. Os advogados às vezes desaprovam um plano, caso uma determinada técnica, por exemplo um interrogatório de longa duração, seja considerada inapropriada, disse o general Miller. Depois do interrogatório, um relatório é preparado e imediatamente inserido na rede nacional de dados de inteligência.
Cerca de 2,8 mil prisioneiros estão detidos em Abu Ghraib, ante os 10 mil detentos no pico do período de superlotação, em 2003. As forças armadas americanas planejam reduzir esse total a mil prisioneiros e transformar o Camp Bucca, em Umm Qasr, sul do Iraque, na principal unidade de detenção. Novas instalações, entre elas uma clínica, estão sendo construídas em Abu Ghraib.
No Camp Redention, também cercado de arame farpado, os prisioneiros dormem em catres, ocupando tendas equipadas com unidades de ar condicionado e de aquecimento. Enquanto o general Miller caminhava pelo perímetro do Camp Redention, os prisioneiros que o reconheciam tentavam atrair sua atenção.
Um deles se queixa porque ele está há muito tempo à espera do interrogatório. O militar americano tenta acalmá-lo. E ele responde, em inglês, um "muito obrigado, o senhor é gentil".
Um fator que contribuía para a superlotação era o tempo requerido para a seleção de prisioneiros, que no passado era de 120 dias e agora foi reduzido a 50 dias, segundo o general Miller.
Por um novo sistema estabelecido em julho, seis funcionários iraquianos dos ministérios do Interior, Direitos Humanos e Justiça e três oficiais norte-americanos revisam o caso de cada prisioneiro. Cerca de 60% das revisões resultam em libertação, segundo o coronel David Quantock.
"Até agora, registramos apenas 20 casos de reincidência", disse o coronel Quantock, afirmando que imagens de retina obtidas para cada prisioneiro permitem que as Forças Armadas determinem rapidamente se os iraquianos detidos já estiveram como prisioneiros no local. Cerca de 7,5 mil prisioneiros foram libertados de Abu Ghraib depois de janeiro, quando funcionários do governo americano fizeram as primeiras revelações sobre abusos.

Visita de familiares
Já para os prisioneiros que ainda não tinham libertação prevista, visitas de familiares foram permitidas na última quarta-feira. Os parentes iniciavam a visita posando para foto ao lado do prisioneiro, vestido de amarelo, diante de cartaz celebrando o futuro do novo Iraque, com todos os grupos étnicos unidos "construindo o futuro". Enquanto um soldado americano se encarregava das fotos, com uma câmera digital, os prisioneiros iraquianos pegavam seus bebês no colo, abraçavam parentes ou se sentavam respeitosamente diante de seus pais.
Minutos mais tarde, outro soldado norte-americano apanhava uma cópia da foto impressa em preto e branco e a entregava de presente ao prisioneiro, com uma segunda cópia a seus parentes.


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